quarta-feira, setembro 30, 2009
RECORDAÇÕES DE ÁFRICA - Mbandaka, a capital da Província do Equador
Aqui passe a linha do Equador
Situada na confluência do Ruki com o rio Zaire a capital do distrito do Equador, Mbandaka, anteriormente Coquilhatville, é, na altura em que alinhavo estas linhas uma cidade com cerca de 150.000 habitantes. Um marco no jardim da residência do Governador simboliza a linha do Equador que atravessa a cidade. Porém contrariamente ao que se poderia prever da geografia, o clima é suportável. De Janeiro a Março e de Junho a Agosto, o tempo é magnífico. A magnífica massa de água do rio Zaire neste local talvez tenha influenciado os Europeus para ali instalarem a capital do distrito do Equador.
Em 1883, quando Stanley subia o rio em direcção a Stanleyville, hoje Kisangani, o explorador parou a seis quilómetros a Sul, em Wangata e baptizou o local onde pernoitou – uma aldeia indígena – de «Equateur”onde pouco depois os Belgas fundaram o seu primeiro posto avançado.
Em 1891, abandonaram Wangata e instalaram-se em Coquilhatville, hoje, Mbandaka.
Entretanto a sede de distrito cresceu e é hoje uma das mais belas cidades do país, com um plano de urbanização ditada pelo rio e seus afluentes. O Palácio e o edifício da Administração, parecem reinar sobre a floresta vizinha. As largas estradas de Mbandaka estão entre as mais e melhores conservadas das cidades zairenses. A avenida Mobutu que se estende do aeroporto à Câmara, a avenida Bonsomi, o centro comercial, a avenida Bolengé, em forma de cornija à beira do rio, são lugares de excelência para passeios.
Placa Jardim Botânico
Ladeada de palmeiras reais com o branco tronco, bem iluminadas de noite, são o ponto de encontro privilegiado dos citadinos. As pracetas são também de uma beleza rara. A da Braderie, o Parque da Revolução são lugares magníficos onde têm lugar manifestações culturais, políticas e passeios de repouso inigualáveis.
Mesmo o bairro popular, a “Cite”, separada da cidade administrativa e comercial pela avenida Bayookéli, não tem nada de comparável ao espectáculo desolante, promíscuo e miserável de outras aglomerações urbanas. Entre estas duas partes da cidade os Belgas tinham instalado em tempos um quartel militar. Este antigo campo não desapareceu, mas o espaço, como aliás indica o nome da avenida, é o local onde se encontram as escolas, uma delas a que frequentou em tempos passados, o general Mobutu.
Mbandaka é também um grande porto fluvial. Os barcos provenientes de Kinshasa ali fazem escala para se abastecerem antes de continuar viagem para Kisangani ou para Boende, Mompono, Ngongo, etc. Tudo isto suscita uma actividade febril ao longo do cais sobre a margem esquerda do rio, onde permanentemente há barcos ancorados.
Casa no Jardim Botânico
Não podemos deixar Mbandaka sem visitar o Museu do Equador. É um edifício pequeno, de estilo barroco a dois passos do porto. Ali está exposta uma rica colecção de objectos antigos: artigos de caça, de pesca, armas de guerra, máscaras, tantãs de todas as formas e feitios, amuletos, e curiosos sarcófagos em madeira chamados “Efombe”, onde, como os Egípcios da Antiguidade, os Wangata, que são a etnia maioritária, colocavam os corpos dos grandes chefes antes de os enterrarem.
O aeroporto de Mbandaka
A principal atracção nos arredores de Mbandaka encontra-se a sete quilómetros da cidade. É um bonito jardim botânico com muitas árvores onde se encontram espécies que atingem proporções impressionantes. Uma vasta gama de plantas alimentares, medicinais, industriais e de ornamentação ali crescem com extraordinária vitalidade. Cerca de 3.200 espécies botânicas ali são estudadas a maior parte no seu habitat natural. Outras mil estão catalogadas nos arredores. O principal ponto de interesse do jardim é a cultura de orquídeas. Nos arredores da capital do distrito existe outra curiosidade – a aldeia de Basoko, construída parcialmente sobre estacas.
terça-feira, setembro 29, 2009
RECORDAÇÕES DE ÁFRICA - A minha nova casa
No meio dos cafeeiros, construí uma casa de habitação. Moderna!... Os materiais foram pedidos a Basankusu e por barco lá chegaram. E, facto curioso, a planta dessa casa, talvez porque ficasse gravada no meu subconsciente, ajudou a gizar esta que hoje habito!...
A mão-de-obra foi-me cedida pela Missão Católica de Mompono – pedreiros, carpinteiros e pintores. Formados nas suas oficinas por frades especializados – oriundos da Bélgica, da Holanda ou da Inglaterra – esses homens eram muito competentes nas respectivas especialidades. Nos alicerces já entrou o ferro e o cimento, materiais que nessa data e na aldeia, nunca tinham sido utilizados na construção.
Faço aqui uma pausa para explicar que no interior do Congo e mais especificamente em plena floresta tropical, para construir uma casa, – sempre casas térreas – não eram necessários quaisquer materiais usados nos nossos países de origem: delimitado o terreno, iniciava-se a construção. Em primeiro lugar, calcava-se bem a terra para fazer o piso. Depois, espetavam-se paus à volta da área previamente estabelecida e entre eles eram entrelaçadas folhas, amarradas com o auxílio de lianas de arbustos próprios para o efeito. Era feita a seguir uma estrutura com os mesmos paus e folhas, estrutura essa que era, posteriormente, coberta com a ramada de um arbusto que dava a ideia do colmo das nossas aldeias serranas – estava assim feito o "esqueleto" da casa... Para as divisões interiores procedia-se de igual forma como para os "muros" de fora. Seguia-se a impermeabilização ou caiação: cavava-se um buraco, punha-se água, amassava-se, e estava pronta a argamassa. Atirava-se a mistura com a mão contra o tapume e estavam feitas as paredes – uma espécie do nosso estuque antigo...
Não havia que ter preocupações a dividir a casa e tanto podia haver duas como três separações no interior. Não havia preconceitos quanto a promiscuidade e, geralmente, a cozinha, um espaço de terra com duas pedras para segurar os tachos, era o aposento mais utilizado. As portas eram construídas da mesma forma. A latrina era feita ao ar livre e resumia-se (nem sempre!..) a uma espécie de fossa árabe. Para se lavar o indígena não tem necessidade de casa de banho, utilizando os rios e os riachos e, contrariamente ao que se possa imaginar, o negro, regra geral, toma banho várias vezes ao dia!
Resumindo: a casa era feita apenas com material local. Nem um prego... ou qualquer outro objecto que fizesse lembrar a "civilização"!... Em conversas com idosos, muitos me fizeram notar que não tinham tido quaisquer vantagens na vinda dos brancos. Pelo contrário! O branco só tinha vindo para complicar...
Mais à frente explicarei, acerca disso, e por experiência própria, as razões em que se fundamentam tais afirmações...
Mas retomando o fio à meada, a minha casa do N'gongo, apesar de manter ainda um pouco da arquitectura colonial em que a varanda se impunha, fugia já ao protótipo da casa tradicional do colonizador. A cozinha e a casa de banho revestidas a azulejos e o amplo espaço com um bar a separar a sala de jantar, do salão, davam-lhe já um toque mais europeu...
Um gerador, movido por um motor a gasóleo, fornecia a energia eléctrica que utilizávamos apenas de noite. O frigorífico era ainda a petróleo, pois a potência não dava para a alimentar.
Rodeada de cafeeiros, com vários arbustos, bananeiras, goiabas e outras árvores tropicais a servir de fronteira, o "meu palácio" era como que a compensação de todo o meu trabalho e de todas as minhas privações...
Nas asas da brisa fresca da manhã vinha até nós o perfume inconfundível da flor dos cafeeiros e o bulício das manhãs tropicais com o clarão vermelho do sol nascente a fazer reluzir as folhas verdes das plantas ainda orvalhadas, é um cenário inesquecível!
Em frente da minha casa havia uma pequena plantação de palmeiras e, muitas vezes, de manhã, quando tomávamos o pequeno-almoço na varanda, bandos de macacos deliciavam-se também comendo os seus frutos.
A casa estava situada no começo da plantação de café e à tarde, depois de se ter feito a pulverização, bandos de aves coalhavam o céu em busca de insectos que fugiam dos insecticidas. Muitas vezes pegava na espingarda, carregava-a com cartuchos de escumilha e era só virar o cano para o ar e disparar sem fazer pontaria. Era uma “chuva” de bicharocos!... Depois, era só grelhá-los e estava pronta a refeição da noite!
Ao lado da casa havia um campo de ténis em terra batida que tinha construído, no qual, aos fins-de-semana, jogava com amigos, belgas, holandeses ou italianos vindos de outras plantações. Algum tempo depois, aquando dos incidentes motivados pela independência, estive em vias de ser preso, acusado de o ter construído para a aterragem de helicópteros dos “comandos belgas”!...
sábado, setembro 26, 2009
RECORDAÇÕES DE ÁFRICA - O dia-a dia
Colheita do café
Como já dissemos anteriormente, as Plantações de N'gongo situavam-se na margem direita do Rio Maringa, a montante de Mompono, a sede da área administrativa, e estendiam-se por uma grande extensão de terreno: trezentos hectares de árvores-da-borracha, as seringueiras; cinquenta hectares de palmeiras, uma pequena área de cacau e cem hectares de café. Uma fábrica de extracção de óleo de palma, uma fábrica onde era coagulado o látex e transformado em folhas. Dois enormes secadores com fornalhas a lenha onde essas folhas eram secas antes de serem expedidas para a Bélgica ou para Angola e uma fábrica de descasque de café.
Trezentos e cinquenta homens, grande parte a viver com suas famílias em casas de adobes de terra cozida e cobertas com chapa de zinco e construídas para o efeito, constituíam a mão-de-obra e ocupavam-se dos diversos serviços.
O dia começava cedo para os que trabalhavam na plantação de borracha. A chegada dos "sangradores" (os homens formados para fazer a sangria das árvores) começava cerca das 4 horas da manha. O pessoal convergia para um grande terreiro em frente de uma casa coberta com uma espécie de colmo, o "ndele". Uma hora depois e à luz de uma lanterna Petromax, começava a chamada. As várias equipas constituídas por vinte homens cada, e comandadas por um capataz, entravam na plantação onde cada homem tinha a sua área bem demarcada, contando cerca de 350 árvores que ele tinha de "sangrar" antes que o Sol começasse a aquecer. Isto porque mal a intensidade dos raios do Sol aumentava, logo uma película formada pelo látex coagulava e impedia que a seiva escorresse para o pequeno copo de alumínio, previamente colocado, e preso à árvore por uma cinta de arame.
Se bem que, normalmente, a hora da recolha do líquido estivesse marcada para as dez, era o calor que mandava. Assim, se o Sol "apertasse", a Ngonga (um tronco oco, onde um especialista em transmissões de mensagens batia com duas maçanetas, fazendo chegar o som a quilómetros de distância) dava o sinal convencionado e os "sangradores" começavam a recolher o látex em vasilhas de alumínio que podiam conter cerca de 20 litros. Uma camioneta percorria então as ruas da plantação recolhendo as vasilhas e levando-as para a fábrica. Uma vez ali, o líquido leitoso era despejado em tanques de cimento, onde lhe era adicionada uma determinada quantidade de água. A essa mistura, depois de bem mexida, eram adicionados, numa proporção adequada, alguns cm3 de ácido fórmico que ajudavam a coagulação e a tornavam mais homogénea. Com o auxílio de placas de alumínio e depois da coagulação, as folhas eram retiradas, passadas nas máquinas apropriadas que as achatavam, adelgaçavam e por fim lhes faziam opérculos para facilitar a secagem. Transportadas depois para os secadores, ali permaneciam cerca de 20 dias sendo depois retiradas e embaladas em malotes, segundo a sua classificação: folhas de 1.ª, de 2.ª, de 3,ª e, finalmente os "scrapes" (raspas, pequenos bocados). Finalmente eram expedidas para Leopoldville e dali para os destinos habituais – Luanda, para a Fábrica Imperial de Borracha, ou para a Bélgica.
Os frutos das palmeiras da concessão, juntamente com outros que se compravam aos autóctones num raio de 50 quilómetro eram cozidos e em seguida postos na máquina extractora, obtendo-se, da operação, o óleo de palma. Depois de decantado, era transvazado para tambores de 200 litros e expedido nos barcos para Kinshasa. Com as borras do óleo e soda cáustica fazíamos sabão que se vendia nas diversas cantinas instaladas na plantação e arredores.
Enquanto na plantação de árvores da borracha e de palmeiras, nos limitávamos apenas a substituir as que morriam com plantas novas que possuíamos em viveiros, a do café fomos nós (o meu irmão Alberto também colaborou durante um tempo) que cortámos a floresta, preparámos o terreno e colocámos as plantas na terra!
Secagem do café
Daí que houvesse uma certa tendência para eu gostar mais da plantação do café. Era a minha "obra"! Desbravámos a floresta, por vezes com grande dificuldade, pois tínhamos de fazer uma espécie de estrado acima do solo por não haver, rente ao chão, espaço para fazer circular o serrote... Serrote porque nesse tempo não havia motosserras e era tudo feito a braços com grandes serrotes como os que havia em Portugal antigamente. Fazia-se o estrado a cerca de 4 ou 5 metros de altura onde havia menos vegetação e começava-se o corte. Após a queda da árvore, cortavam-se as outras à volta e assim se procedeu ao longo de meses...
As plantas vieram da Estação Agrícola de Yangambi, um viveiro do Estado onde se iam buscar todas as árvores, já seleccionadas, para plantar. As plantas vinham envasadas e durante muitos dias procedemos à sua plantação. Acompanhei o seu crescimento até que um dia as bagas vermelhas começaram a aparecer – como cerejas pequenas!...
Seguia-se depois a secagem ou não, pois o descasque podia fazer-se quer com elas verdes, quer secas, usando o processo por via húmida ou seca.
Descasque do café
A colheita do café era feita pelo pessoal da plantação, posto a secar e depois de tratado nas máquinas, descascado e escolhido, era enviado, sempre por barco, para Leopoldville e daí li transaccionado e vendido para vários países.
A qualidade que cultivávamos era a “ROBUSTA”, havendo alguns pés de “ARÁBICA” para uso próprio, isto é, como tomávamos café do nosso, fazíamos uma mistura das duas qualidades, obtendo um café excelente!
sexta-feira, setembro 25, 2009
RETRATOS
Há homens que recriam o mundo a partir de si próprio e que se julgam uma espécie de deuses. Acreditam que podem bastar-se sozinhos, que não precisam de ninguém, e só o que pensam e dizem é que conta.
Só eles sabem. Dizem-se detentores de toda a sapiência, arvoram-se em construtores de ideias e rejeitam quaisquer modificações à sua maneira de pensar. Tudo o que os outros fazem está mal feito e só eles podem fazer melhor. Não gostam de ser contrariados, nem aceitam que lhes digam que têm defeitos.
Os defeitos estão sempre nos outros que não neles. Como todo o ditador que se preze eles precisam de público, de gente que com eles partilhe, que tenha os mesmos gostos, que cultive os mesmos ideais e, sobretudo, que faça da bajulação um sacerdócio, aplaudindo-os, elogiando-os, apoiando-os.
Raiva, ódio, maledicência e inveja são sentimentos que, ao mais leve sopro, podem explodir e atingir inocentes alheios às suas manobras e contrários à sua conduta.
Não há fronteiras para essa gente e na sua caminhada pela vida, não hesitam em fazer ataques com armas imorais como a difamação, a calúnia, a traição, o embuste, a mentira e a hipocrisia.
Nada os detém e envoltos num esfarrapado manto de superioridade, eles pavoneiam-se emproados, cheios de nada, tentando a todo o custo transmitir a imagem de que nada temem.
A arrogância é outra das suas armas de defesa, porque na sua maneira de pensar quem mais alto fala, mais facilmente é ouvido. Pobres deles!..
Insuflados de sentimentos de importância, usam sempre a primeira pessoa do singular no exagero dos seus feitos, nem sempre verdadeiros.
Têm obsessão por fantasias de sucesso ilimitado, procuram fama, poder e omnipotência. Procuram adulação, atenção e afirmação.
Não aceitam que deles discordem e vivem convencidos que merecem tratamento especial, sempre com prioridade em relação aos outros.
São invejosos e pensam que os outros têm o mesmo sentimento em relação a eles. Desconfiam de tudo e de todos.
São, por tudo isso, uns eternos dependentes. Dependentes de uma fachada que criaram e cuja manutenção necessita de cuidados cada vez maiores. Com o rolar dos anos, com a erosão do tempo e a diminuição das forças, as aparências tornam-se cada vez mais difíceis de manter…
E como neste mundo tudo é efémero, da falsa aparência que sempre ostentaram ficará apenas desencanto e frustração.
É bom não esquecer que o êxito pessoal depende, quase sempre, da humildade, da persistência e da lealdade com que procuramos realizar os sonhos que temos.
RECORDAÇÕES DE ÁFRICA - Orquídeas selvagens
Já algumas vezes aqui vos tenho falado do meu refúgio quando em tempos difíceis me assaltam dúvidas, temores e incertezas que contagiam, que desencorajam e que deprimem. É então que procuro a minha «arca das recordações» onde guardo vários pedaços do quebra-cabeças que é a vida – essa manta de retalhos que constitui a nossa caminhada por este mundo. Farrapos, muitos farrapos!... Alguns já debotados, outros em vias disso. Folheio ao acaso as notas que tomei ao longo dos anos e quase sempre me detenho, com um misto de saudade e emoção naquele espaço de tempo que medeia entre os anos 50 e 60. Uma década que me marcou interiormente, que me moldou e que arrumou ideias e sentimentos, até então indefinidos e esparsos...
Em 50, tinha acabado a guerra há pouco, e vivia-se a todo o gás tentando recuperar o tempo perdido. Com as sopas em pacote chega ao Velho Mundo a coca-cola. Começa a falar-se no aspirador e as meias de nylon fazem a sua aparição. Em França – de onde tinha mais notícias, através dos jornais, embora chegados com atrasos de meses – a indústria automóvel atingia as 190 mil unidades produzindo, entre outros, um carro que acabaria por seduzir a Europa, a Renault 4. Em 54, – tenho anotado – no salão das "Arts Ménagers" em Paris, podia fazer-se a barba de graça com a máquina de barbear eléctrica, made in USA!
Era o tempo dos três "Dês" – "Drôles de Moeurs, Drôles de Modes e Drôle d’Époque! Mas era também a grande festa da literatura francesa com Sartre, Mauriac, Camus, Gide e da ousadia de Françoise Sagan com "Bonjour Tristesse". E com Minou Drouet que publica poemas de amor aos 7 anos e Roberto Benzi que dirige em calção as mais famosas orquestras! Era o tempo dos prodígios! E continuo a folhear...
Martine Carol, Brigitte Bardot, são duas "bombas" que explodem e cujas ondas de choque chegam a atingir os "States". O cinema marca pontos: Jean Marais, Eddie Constantine, aliás, Lemy Caution, Louis Jordan, Belmondo, Charrier, Gérard Philipe, apaixonam multidões de admiradoras. Edith Piaf reina no music-hall e quando canta «é a chuva que cai, é o vento que sopra, é a luz da lua que estende o seu manto», no dizer de Cocteau. De Bruxelas chegam Brassens, Bécaud e Brel que vêm justar-se a Yves Montand, Aznavour, e a tantos outros...
Do outro lado do Atlântico é Sidney Bechet com "Petite Fleur" e os seus novos ritmos de jazz "New Orléans" que faziam vibrar a juventude, que escutava, bebendo laranjada...
E paro de folhear... São pedaços de papel amarelecido, escritos na solidão dos trópicos, à luz da "Petromax", ouvindo os ruídos indefinidos da floresta virgem, e sorvendo o perfume inebriante das orquídeas selvagens...
RECORDAÇÕES DE ÁFRICA - A capital do Distrito - Boende
Quem vem de Coquilhatville,(hoje Mbandaka) ou mais especificamente de Ingende por uma picada no meio da floresta, depois de atravessar várias pontes de madeira tosca, tem ainda de utilizar uma jangada para atravessar o rio Tshuapa e chegar a Boende.
A vila tinha na década de 60 uma população de cerca de 10.000 habitantes e o aspecto de uma aldeia escondida na floresta. Tirando algumas vivendas de funcionários, perdidas no meio das palmeiras e os edifícios administrativos, a cidade é um aglomerado de casotas sem características definidas cercadas por renques de arbustos. Agricultores, pescadores e alguns artistas que trabalham o marfim ali se misturam e vivem em conjunto. A principal avenida, onde estão instalados os Serviços do Distrito, hoje denominada Avenida da Revolução é a única pavimentada e é ladeada por palmeiras. Do outro lado existe o bairro da Missão, um conjunto de belas casas cobertas de chapa ondulada e onde tudo é limpo, calmo e sereno. Os padres brancos ali passam uma vida retirada do mundo e propícia à meditação. Num extenso terrenos vedado com arame, bois e vacas pastam tranquilamente.
Porém, o principal encanto de Boende é o Tshuapa, um rio de águas escuras onde quase se não nota a corrente. Dir-se-ia que as águas estão adormecidas! Da margem esquerda, de noite e sobretudo quando há barcos no porto fluvial o espectáculo é maravilhoso.
Boende dispunha de um aeroporto com uma pista em terra batida onde aterravam, três dias por semana, pequenos aviões – os famosos DC3 e depois os Fokker.
Havia muitas lojas de comércio no centro, a maior parte geridas por europeus. Havia também dois supermercados mais tarde equipados com sistemas de frio onde já chegavam víveres frescos vindos de Leopoldville por avião. Uma pequena unidade hoteleira, uma padaria, uma garagem que representava a General Motors, uma fábrica de descasque de arroz, uma fábrica de descasque e torrefacção de café e várias pequenas indústrias, faziam da cidade um ponto importante do interior.
Para nos abastecermos de mantimentos e também para passear, deslocávamo-nos, algumas vezes do Ngongo a Boende, uma distância de cerca de 160 quilómetros. A estrada era em terra batida, uma picada, portanto, e a cerca de 80 quilómetros, em Samba, onde existia uma feitoria de uma outra companhia portuguesa, a Gomal, tínhamos de atravessar o rio Maringa com o carro numa jangada. Inicialmente a jangada levava apenas um carro e era movida por homens que, com remos a faziam subir a corrente e depois, a pouco e pouco, deixavam que ela descaísse, atravessasse o rio e acostasse na outra margem...
Mais tarde foi-lhe adaptado um motor e mais uma baleeira o que permitia uma travessia mais segura e rápida. Já com a cidade de Boende à vista, outra travessia era necessário fazer – a do rio Tshuapa. Aí as coisas eram mais fáceis não só pelo tamanho da jangada como pela rapidez da travessia. A jangada podia levar quatro carros e os seus dois potentes motores depressa nos punham do outro lado.
Casa do Comissário de Distrito
Estas idas a Boende constituíam uma festa quando os meus filhos atingiram a idade de 4 e 5 anos. Minha mulher preparava um lanche e ao meio do caminho parávamos para petiscar. E era sempre uma alegria para os dois petizes. Com o apetite da idade, aguçado ainda pela alegria do passeio, era um consolo vê-los comer!...
Umas vezes regressávamos no mesmo dia, outras dormíamos para o dia seguinte.
(Excertos do caderno “A minha África”
quarta-feira, setembro 23, 2009
RECORDAÇÕES DE ÁFRICA -Ligações aéreas
O inesquecível DC 3
As viagens mais importantes e mais urgentes entre Leopoldville e as cidades do resto do País fazem-se de avião.
Em todas as cidades do interior e até em locais onde existem grandes aglomerados e é mais difícil o acesso rodoviário, há uma pista para a aterragem de aeronaves.
Estes aeródromos são em terra batida, bordejados, por vezes, de altas ervas.
Uma casa, a maior parte das vezes coberta com folhas zincadas, serve de terminal.
Não há biruta nem qualquer aparelho que indique a velocidade do vento ou outras condições climatéricas. Apenas o fumo que se eleva de uma fogueira que arde no fim da pista indica ao piloto a melhor orientação que deve tomar para aterrar. E sempre em segurança!
Os pilotos, de origem belga e com muita experiência, guiam-se nos seus percursos pelos rios. Não há voos que cheguem ao interior de noite. O contrário, isto é, voos que cheguem a Leolpoldville ao lusco-fusco, são frequentes.
A única vez que um avião aterrou em Boende de noite foi em 1960 aquando da rebelião após a independência. O avião trazia a bordo o Comandante das Forças Armadas Congolesas na altura, General Mobutu e vinha expressamente para libertar os europeus que se encontrava prisioneiros no Quartel da cidade onde me encontrava com um irmão meu e outros europeus, Belgas, Holandeses, Ingleses e outras nacionalidades.
Para aterrar foi necessário colocar ao fundo da pista vários automóveis com os faróis acessos para sinalizar a pista de aterragem. Mas será um episodia que contarei mais adiante.
Durante os trinta anos que passei no Congo nunca houve, felizmente, um acidente de avião. Houve, é certo, sustos, mas não passaram disso. Descolagens abortadas ou aterragens só com um motor eram factos que quase não constituíam notícia. Várias vezes aterrámos com uma hélice em bandeira, mas nunca houve problemas.
No começo a tripulação dos aviões era constituída pelo piloto e um mecânico. Dancei muitas vezes dentro deles e sempre que passávamos sobre Coquilhatville, hoje Mbandaka, a turbulência era de tal forma contínua que mesmo os não crentes faziam as pazes com Deus. Os “poços de ar”, por vezes, faziam com que descêssemos uns vinte metros! Grandes aviões, esses!... Quando apanhávamos uma tempestade mais forte, a chuva chegava a entrar no avião pelas frinchas das portas! Eram uns autênticos heróis do ar esses DC3!...
Fabricado pela Douglas Aircraft Company, o DC3, serviu inicialmente para o transporte de tropas durante a 2.ª Grande Guerra. Nessa altura foram fabricados cerca de 11.000 unidades. Terminada a guerra milhares desses aviões foram adaptados para o transporte de passageiros e vendidos a vários países.
Era um avião com dois motores Pratt & Whitney, com 4,50 m de altura, 8 de largura, 19,7 de comprimentos, uma envergadura de 29 m, velocidade de cruzeiro 270/298, capacidade 28 passageiros e 4 tripulantes e uma autonomia de voo de cerca de 1.900 km.
Quase setenta anos depois do voo inaugural, o DC3 continua ainda, em alguns países, a voar. Era um avião excepcional: seguro, rápido (para a época) confiável que colocou a Douglas no primeiro lugar entre os fabricantes de aeronaves.
Ainda guardo nos ouvidos o inigualável ronronar dos Pratt & Whitney, os motores do DC3, um dos mais importantes aviões comerciais jamais construídos.
RECORDAÇÕES DE ÁFRICA - Extracção do látex
Extracção do látex
Convém abrir aqui um pequeno parêntese para explicar como se faz a extracção do látex (líquido branco espesso e pegajoso) que depois se transforma em borracha.
Esse líquido obtém-se fazendo aquilo a que se chama “sangria”. Esta operação consiste num pequeno corte descendente sobre a metade ou um terço do tronco da árvore e o líquido começa a cair para um recipiente geralmente de alumínio.
A incisão tem de ser feita manhã cedo, pois que quando o Sol começa a aquecer faz com que haja uma coagulação e uma película feche o corte impedindo que o líquido continue a sair.
Não confundir látex com seiva…
Enquanto a seiva assegura a distribuição da água, dos sais minerais e do açúcar, o látex está relacionado com os mecanismos naturais da defesa da árvore e circula por uma rede de vasos diferentes, chamados canais “latexíferos”.
Como acontece com a resina do pinheiro o látex escorre logo que seja feita uma ferida na árvore e forma, quando seca, uma camada protectora.
As árvores podem começar a ser “sangradas” a partir dos 5 anos e manter-se em produção durante cerca de 30 anos.
Logo que o látex deixa de correr para os copos, estes são despejados em recipientes de alumínio que são transportados para a fábrica, onde o conteúdo é vazado para tanques.
Ali é coagulado com a ajuda de, geralmente, ácido fórmico. Após o endurecimento as folhas são passadas por várias máquinas que as vão adelgaçando até passarem pela última que as transforma numa espécie de cera de abelhas.
A máquina faz-lhes uma série de opérculos para facilitar a secagem. Segue-se a colocação em secadores e quando se nota que já não contêm humidade, retiram-se e são embaladas em fardos com designações diferentes conforme o seu grau de perfeição.
Os fardos são depois expedidos para o estrangeiro onde, depois de outras manipulações, se obtém a borracha que vai servir para as mais variadas aplicações.
segunda-feira, setembro 14, 2009
RECORDAÇÕES DE ÁFRICA - Mãos à obra
Passados dois dias fiquei sozinho com cerca de trezentos trabalhadores que se dividiam pela exploração da borracha, extracção do óleo de palma e outros trabalhos. Havia pedreiros, carpinteiros, trabalhadores de limpeza da plantação, caçadores, pescadores e vários outros sem trabalho certo.
Muitos viviam nas senzalas vizinhas e cerca de metade habitava na plantação, em casas construídas com blocos de terra secos ao sol e tijolo feitos manualmente no local ou ainda em palhotas cobertas com folhas secas, uma espécie de colmo.
Os pescadores e caçadores tinham por missão pescar e caçar e trazer a caça que era distribuída gratuitamente pelos trabalhadores. O rio Maringa era muito rico em peixe. As espécies eram muitas e desde o peixe pequeno, passando pelo médio e terminando no crocodilo, havia sempre pescado com abundância. Da caça pode dizer-se o mesmo. Desde o pequeno antílope, passando pelo macaco, pela galinhola e terminando no boi selvagem, havia quase sempre carne para distribuir. Quando, por ventura, víamos que era de mais, mandávamos secar e, assim, ficávamos com uma reserva...
Uma vez até se distribuiu pelos trabalhadores um hipopótamo! Mas isso vou contar mais à frente.
A plantação de borracha tinha uma extensão de 300 hectares e estava dividida em vários talhões, cada qual com cerca de 300 árvores e que eram atribuídas a cada "sangrador" para, todos os dias, fazerem a colheita do látex.
Como atrás disse, a chamada era feita cedo e os homens entravam na plantação logo que a manhã rompia. A incisão nas árvores tinha que ser feita por essa altura, pois mal o sol começasse a aquecer, o látex ia coagulando lentamente até que uma fina película acabava por tapar a ferida interrompendo assim a sangria. Entretanto os capatazes iam percorrendo os vários talhões para verificar se o trabalho tinha sido feito convenientemente. Isso para evitar que os "sangradores" – o que era muito frequente – por preguiça, deixassem algumas árvores sem fazerem a respectiva incisão.
Cerca das dez horas, o encarregado de tocar a "ngonga" (um tronco oco, feito a propósito e que produzia um som que se ouvia longe) batendo com as duas maçanetas, indicava que podiam recolher o látex que tinha escorrido para uns pequenos copos redondos de alumínio.
Os "sangradores" despejavam então os copos para um recipiente de 30 litros, em alumínio e, por fim uma camioneta transportava-os para a fábrica que estava situada junto ao rio.
Um grande hangar coberto com folhas de zinco abrigava as máquinas e os tanques onde se tratava o látex. O conteúdo dos recipientes, – depois de pesado e o seu peso ter sido posto num registo geral e em cada um dos livros de cada trabalhador para o prémio de rendimento no fim do mês – era dividido pelos vários tanques de cimento revestidos com azulejos. Adicionava-se então uma quantidade de água proporcional aos litros ou quilos de látex vazados, mexia-se e adicionava-se, misturado com água, uma quantidade previamente calculada de ácido fórmico para acelerar a coagulação. Logo a seguir e nas ranhuras existentes nos tanques colocavam-se placas de alumínio o que dava origem a que a mistura coagulasse e ficasse em placas finas com cerca de 2 cm de espessura. Cerca de três horas depois, retiravam-se as placas de alumínio e tínhamos então folhas espessas. Essas folhas eram passadas por várias calandras ou prensas que as achatavam e ao mesmo tempo lhes tiravam a água que traziam. Por último passavam por uma outra calandra de cilindros estriados que fazia nas folhas uns opérculos como nos favos de mel das abelhas. Esta operação tinha como finalidade ajudar a fazer uma secagem mais rápida.
As folhas eram então levadas para um secador a lenha e aí ficavam penduradas por um período entre os 4 e 8 dias. Depois de bem secas, as folhas apresentavam uma cor amarelada e já não se colavam.
Eram então transportadas para a secção de embalagem onde eram escolhidas e embaladas para exportação. A escolha obedecia a certos requisitos e conforme as características assim eram classificadas em: "Sheets I, Sheets II, Sheets lll, Lumps e Scraps, e embaladas em fardos de 50 quilos e expedidas por barco para a Bélgica, Inglaterra ou Angola, via Leopoldville.
Havia também, mesmo junto ao rio, a fábrica do óleo de palma. Era composta por uma autoclave para cozer os frutos da palmeira, (dendê) um malaxador para separar a polpa da noz do fruto de palma, uma centrifugadora para extrair o óleo, um triturador para partir a noz e extrair o coconote e uma caldeira a vapor para fazer girar tudo isso.
RECORDAÇÕES DE ÁFRICA - O dia seguinte...
Lembro-me que no dia da minha chegada me deitei cedo, não só porque estava um pouco cansado mas também porque sabia que no dia seguinte me esperava o desconhecido, e havia que descansar para estar em forma.
Recordo que nos trópicos, às 18 horas já é de noite e às 6, o dia começa a romper...
No dia seguinte, logo às 4 da manhã assisti, com o tal senhor que ia substituir, à chamada dos "sangradores".
A chamada fazia-se da varanda da casa, à luz de um candeeiro a petróleo, um "Petromax", e ingerindo taças de café cultivado na plantação. Café fortíssimo que nos punha mesmo a mexer...
E o senhor falou: «Está feita a chamada. Agora é preciso vigiar os 280 sangradores que vão entrar na plantação. Cada equipa de 20 homens tem à frente um capataz e, por seu intermédio, é preciso saber se tudo está a correr bem...»
Entretanto entrei em casa para procurar o casque colonial que nessa altura se usava como protecção contra os raios solares. Durante muito tempo culpei tal ornamento pela queda do meu rico cabelo...
Frigorífico, apesar do calor tropical, era coisa que não existia. E no capítulo da alimentação o meu antecessor foi claro, prático e muito franco: «Quando quiser beber uma cerveja fresca ponha-a num balde com água ou então enterre-a em areia molhada... Para o resto não há necessidade, pois como tudo o que lhe disseram para comprar é enlatado, está resolvido o problema: é abrir e comer. Aliás, temos aí uma equipa de pescadores e outra de caçadores que lhe trazem constantemente peixe ou carne fresca. Nos pequenos riachos abunda o camarão de água doce que as mulheres apanham e vêm vender. É uma delícia! O sistema a seguir é o mesmo: mandar o cozinheiro preparar, e comer.
Tem também aqui no quintal muita fruta – bananas de diversas qualidades, ananases, abacaxis goiabas, laranjas, mangas, papaias, toranjas e outros frutos indígenas que os trabalhadores lhe irão trazer. Muito bons...»
Depois, mostrou um tambor de 200 litros encostado à casa e explicou: «Ali está a minha reserva de peixe. Os pescadores trazem muitos ainda vivos e eu então ponho-os naquele tambor que está com água e vou consumindo à medida que necessito... Como vê, aqui não se morre à fome. Mesmo que lhe faltem os víveres que trouxe, e não haja peixe do rio nem carne do mato, pode comprar galinhas e ovos aos indígenas... Quanto à farinha para fazer pão, aí a coisa é mais complicada. Mas também se resolve: quando não há, não se come!...»
Seguiu-se depois uma lição sobre princípios e comportamento:
«Antes de dar uma ordem, veja primeiro se ela pode ser executada. Isso é essencial. Agora no começo, é necessário mostrar e dar provas de que sabe mandar. Quando tiver dúvidas, abstenha-se. Uma desobediência de um trabalhador a uma ordem mal dada pode desacreditá-lo perante todo o resto do pessoal...
Tem aí livros em francês onde pode aprender tudo sobre o que aqui se faz: extracção e preparação da borracha; colheita e compra de fruto de palma e respectiva transformação em óleo; britagem da noz e preparação da noz e preparação do coconote; plantação, tratamento, colheita, secagem e descasque do café...
Os livros estão numa prateleira no escritório... Leia e depois com a prática, vai ver que não custa nada!...»
Vieram depois os conselhos dados por um homem com 40 anos de África, e 60 de idade, a um jovem de 24 anos, recém-chegado. E com o clima a espicaçar-lhe a carne...
«Já por lá passei, sei o que são essas necessidades, mas aqui tem que ter muito cuidado: primeiro, por causa das doenças e em seguida porque há também regras a respeitar. Mulher casada, se lá é pecado, aqui pode levar direitinho ao outro mundo...Cuidado, portanto! Há por aí muita mulher solteira. Algumas até hão-de vir oferecer-se... Colha informações primeiro. Informe-se com o cozinheiro, o velho Mbulungu. Já trabalha com brancos há muitos anos e os seus conselhos e sugestões são dignos de crédito... Não esqueça que estamos longe de médicos e de hospitais e uma blenorragia aqui não se cura facilmente...»
E tinha razão, o Sr. Machado. A confirmação veio alguns meses mais tarde. Um cidadão belga que trabalhava numa plantação próxima contraiu a doença e teve de ser evacuado de urgência, numa piroga a motor, para o Hospital inglês da leprosaria de Baringa...
sexta-feira, setembro 11, 2009
RECORDAÇÕES DE ÁFRICA - Estradas
Como já foi dito a maior parte do transporte de mercadorias entre as feitorias e as sedes das Sociedades ou os locais de destino era feito por barco visto que os rios eram navegáveis. No entanto, havia também “estradas” ou picadas, em terra batida, algumas em muito bom estado de conservação que permitiam boas médias. Por exemplo, entre Basankusu e Mompono ou Mompono Boende, não havia problemas, muito embora tivéssemos de atravessar dois rios sobre barcaças a motor que transportavam os veículos de uma margem para a outra.
O mesmo não acontecia nas picadas do interior profundo onde, por vezes, o trânsito era problemático. Quando havia pequenos riachos, as pontes eram construídas com troncos roliços, sem qualquer adaptação, e a sua travessia era muito arriscada. Quando fazíamos viagens logo às primeiras horas da manhã e tínhamos de atravessar uma ponte, era preciso cautela e ver se o “tabuleiro” se encontrava no sítio. Muitas vezes, durante a noite, uma manada de elefantes entretinha-se a “brincar” com os troncos … e adeus ponte!...
Numa aldeia, conhecida pelo nome de Loyau, onde íamos comprar fruto da palma para a fábrica e havia várias dessas pontes eram frequentes esses percalços o que nos obrigava a ter de repor os madeiros para continuar viagem. Só uma vez, manhã cedo, fomos obrigados a parar para deixar passar “suas excelências” que, pachorrentos iam lambiscando uma folha aqui outra acolá…Nunca vi o motorista, o Eugène, bom conhecedor da floresta tropical, dos seus bichos e dos seus mistérios, dar qualquer sinal de medo perante as várias situações que tivemos de enfrentar quando fazíamos o nosso périplo, quer na compra de produtos quer no abastecimento das várias feitorias que possuíamos.
Essas viagens tornavam-se penosas no tempo das chuvas, pois havia locais que ficavam submersos durante muitos dias e era difícil se não impossível fazer essas deslocações. Recordo-me de um local, perto de Samba, em que todos os anos numa distância de um quilómetro a travessia era difícil e não havia camião que ali se não atascasse. Os indígenas de uma povoação vizinha conheciam o facto e juntavam-se ali próximo e quando um veículo se enterrava no lodo, logo apareciam a oferecerem-se para ajudar mediante o pagamento de alguns francos. Era um negócio que prosperava enquanto a estação das chuvas não terminasse…
Depois da era dos velhos camiões que tinham feito a Última Guerra e que como já disse não tinham qualquer comodidade, começaram a aparecer os da General Motors, boas máquinas, resistentes e com uma mecânica tão fácil que não havia avaria que não se resolvesse “sur place”. Um alicate, um bom bocado de arame, um pneu de reserva, um Kit de emergência com platinados, um rotor, umas velas e mais umas pecitas… e pronto, aí estava a máquina, de novo, a funcionar.
Referindo-me ainda às vias de comunicação entre os locais mais importantes – sedes de freguesia, concelho, entrepostos comerciais de grande vulto ou grandes plantações quer de borracha, óleo, cacau ou café – gostaria de acrescentar que de cinquenta em cinquenta quilómetros havia uma “gîte d’étape”que poderemos traduzir por “casa de passagem ou de descanso”.
Essa casa tinha uma cozinha rudimentar sem qualquer utensílio, uma sala com uma mesa e duas cadeiras, uma casa de banho (fossa árabe) e um chuveiro (o tal balde com um crivo). Quem ali quisesse pernoitar ou descansar podia fazê-lo. Como todos sabiam, quando era necessário dormir, levavam a roupa de cama e os apetrechos necessários para cozinhar. Pernoitei em algumas e confesso que eram para mim uma espécie de “oásis”. Depois de percorrer, debaixo de um sol abrasador, algumas centenas de quilómetros em estradas de terra batida, cansado de mais uma jornada de trabalho, uma banhoca (mesmo de balde) seguida de um belo churrasco de frango “pica no chão” regado com uma bela cerveja (mesmo quente), eram uma espécie de restaurador de forças para o dia seguinte…
O mesmo não acontecia nas picadas do interior profundo onde, por vezes, o trânsito era problemático. Quando havia pequenos riachos, as pontes eram construídas com troncos roliços, sem qualquer adaptação, e a sua travessia era muito arriscada. Quando fazíamos viagens logo às primeiras horas da manhã e tínhamos de atravessar uma ponte, era preciso cautela e ver se o “tabuleiro” se encontrava no sítio. Muitas vezes, durante a noite, uma manada de elefantes entretinha-se a “brincar” com os troncos … e adeus ponte!...
Numa aldeia, conhecida pelo nome de Loyau, onde íamos comprar fruto da palma para a fábrica e havia várias dessas pontes eram frequentes esses percalços o que nos obrigava a ter de repor os madeiros para continuar viagem. Só uma vez, manhã cedo, fomos obrigados a parar para deixar passar “suas excelências” que, pachorrentos iam lambiscando uma folha aqui outra acolá…Nunca vi o motorista, o Eugène, bom conhecedor da floresta tropical, dos seus bichos e dos seus mistérios, dar qualquer sinal de medo perante as várias situações que tivemos de enfrentar quando fazíamos o nosso périplo, quer na compra de produtos quer no abastecimento das várias feitorias que possuíamos.
Essas viagens tornavam-se penosas no tempo das chuvas, pois havia locais que ficavam submersos durante muitos dias e era difícil se não impossível fazer essas deslocações. Recordo-me de um local, perto de Samba, em que todos os anos numa distância de um quilómetro a travessia era difícil e não havia camião que ali se não atascasse. Os indígenas de uma povoação vizinha conheciam o facto e juntavam-se ali próximo e quando um veículo se enterrava no lodo, logo apareciam a oferecerem-se para ajudar mediante o pagamento de alguns francos. Era um negócio que prosperava enquanto a estação das chuvas não terminasse…
Depois da era dos velhos camiões que tinham feito a Última Guerra e que como já disse não tinham qualquer comodidade, começaram a aparecer os da General Motors, boas máquinas, resistentes e com uma mecânica tão fácil que não havia avaria que não se resolvesse “sur place”. Um alicate, um bom bocado de arame, um pneu de reserva, um Kit de emergência com platinados, um rotor, umas velas e mais umas pecitas… e pronto, aí estava a máquina, de novo, a funcionar.
Referindo-me ainda às vias de comunicação entre os locais mais importantes – sedes de freguesia, concelho, entrepostos comerciais de grande vulto ou grandes plantações quer de borracha, óleo, cacau ou café – gostaria de acrescentar que de cinquenta em cinquenta quilómetros havia uma “gîte d’étape”que poderemos traduzir por “casa de passagem ou de descanso”.
Essa casa tinha uma cozinha rudimentar sem qualquer utensílio, uma sala com uma mesa e duas cadeiras, uma casa de banho (fossa árabe) e um chuveiro (o tal balde com um crivo). Quem ali quisesse pernoitar ou descansar podia fazê-lo. Como todos sabiam, quando era necessário dormir, levavam a roupa de cama e os apetrechos necessários para cozinhar. Pernoitei em algumas e confesso que eram para mim uma espécie de “oásis”. Depois de percorrer, debaixo de um sol abrasador, algumas centenas de quilómetros em estradas de terra batida, cansado de mais uma jornada de trabalho, uma banhoca (mesmo de balde) seguida de um belo churrasco de frango “pica no chão” regado com uma bela cerveja (mesmo quente), eram uma espécie de restaurador de forças para o dia seguinte…
RECORDAÇÕES DE ÁFRICA - O 1.º dia na plantação
Lembro-me que no dia da minha chegada me deitei cedo, não só porque estava um pouco cansado mas também porque sabia que no dia seguinte me esperava o desconhecido, e havia que descansar para estar em forma.
Recordo que nos trópicos, às 18 horas já é de noite e às 6, o dia começa a romper...
No dia seguinte, logo às 4 da manhã assisti, com o tal senhor que ia substituir, à chamada dos "sangradores".
A chamada fazia-se da varanda da casa, à luz de um candeeiro a petróleo, um "Petromax", e ingerindo taças de café cultivado na plantação. Café fortíssimo que nos punha mesmo a mexer...
E o senhor falou: «Está feita a chamada. Agora é preciso vigiar os 280 sangradores que vão entrar na plantação. Cada equipa de 20 homens tem à frente um capataz e, por seu intermédio, é preciso saber se tudo está a correr bem...»
Entretanto entrei em casa para procurar o casque colonial que nessa altura se usava como protecção contra os raios solares. Durante muito tempo culpei tal ornamento pela queda do meu rico cabelo...
Frigorífico, apesar do calor tropical, era coisa que não existia. E no capítulo da alimentação o meu antecessor foi claro, prático e muito franco: «Quando quiser beber uma cerveja fresca ponha-a num balde com água ou então enterre-a em areia molhada... Para o resto não há necessidade, pois como tudo o que lhe disseram para comprar é enlatado, está resolvido o problema: é abrir e comer. Aliás, temos aí uma equipa de pescadores e outra de caçadores que lhe trazem constantemente peixe ou carne fresca. Nos pequenos riachos abunda o camarão de água doce que as mulheres apanham e vêm vender. É uma delícia! O sistema a seguir é o mesmo: mandar o cozinheiro preparar, e comer.
Tem também aqui no quintal muita fruta – bananas de diversas qualidades, ananases, abacaxis goiabas, laranjas, mangas, papaias, toranjas e outros frutos indígenas que os trabalhadores lhe irão trazer. Muito bons...»
Depois, mostrou um tambor de 200 litros encostado à casa e explicou: «Ali está a minha reserva de peixe. Os pescadores trazem muitos ainda vivos e eu então ponho-os naquele tambor que está com água e vou consumindo à medida que necessito... Como vê, aqui não se morre à fome. Mesmo que lhe faltem os víveres que trouxe, e não haja peixe do rio nem carne do mato, pode comprar galinhas e ovos aos indígenas... Quanto à farinha para fazer pão, aí a coisa é mais complicada. Mas também se resolve: quando não há, não se come!...»
Seguiu-se depois uma lição sobre princípios e comportamento:
«Antes de dar uma ordem, veja primeiro se ela pode ser executada. Isso é essencial. Agora no começo, é necessário mostrar e dar provas de que sabe mandar. Quando tiver dúvidas, abstenha-se. Uma desobediência de um trabalhador a uma ordem mal dada pode desacreditá-lo perante todo o resto do pessoal...
Tem aí livros em francês onde pode aprender tudo sobre o que aqui se faz: extracção e preparação da borracha; colheita e compra de fruto de palma e respectiva transformação em óleo; britagem da noz e preparação da noz e preparação do coconote; plantação, tratamento, colheita, secagem e descasque do café...
Os livros estão numa prateleira no escritório... Leia e depois com a prática, vai ver que não custa nada!...»
Vieram depois os conselhos dados por um homem com 40 anos de África, e 60 de idade, a um jovem de 24 anos, recém-chegado. E com o clima a espicaçar-lhe a carne...
«Já por lá passei, sei o que são essas necessidades, mas aqui tem que ter muito cuidado: primeiro, por causa das doenças e em seguida porque há também regras a respeitar. Mulher casada, se lá é pecado, aqui pode levar direitinho ao outro mundo...Cuidado, portanto! Há por aí muita mulher solteira. Algumas até hão-de vir oferecer-se... Colha informações primeiro. Informe-se com o cozinheiro, o velho Mbulungu. Já trabalha com brancos há muitos anos e os seus conselhos e sugestões são dignos de crédito... Não esqueça que estamos longe de médicos e de hospitais e uma blenorragia aqui não se cura facilmente...»
E tinha razão, o Sr. Machado. A confirmação veio alguns meses mais tarde. Um cidadão belga que trabalhava numa plantação próxima contraiu a doença e teve de ser evacuado de urgência, numa piroga a motor, para o Hospital inglês da leprosaria de Baringa...
RECORDAÇÕES DE ÁFRICA -N'GONGO (Mompono)
Edição n.º 917 – de 13 de Novembro de 2008
N'gongo situa-se na freguesia de Mompono, concelho de Befale e distrito de Boende, Província do Equador, cuja capital era Coquilhatville, hoje Mbandaka. Encontram-se na margem direita do rio Maringa, rio navegável, que nasce alguns quilómetros acima num ponto chamado Befori-Lioko e que desagua no Lulonga em Basankusu.
N'gongo é apenas o sítio onde se situam as plantações, pois não existe qualquer aldeia com esse nome. Uma estrada de terra batida liga as plantações a Mompono, sede da Comarca onde está instalado o administrador da circunscrição. Um militar belga com um pequeno destacamento de soldados indígenas olha pela ordem. Há ainda um posto do correio e um porto fluvial onde são descarregadas as mercadorias e tudo o que é necessário para a manutenção dos serviços. Há também um campo de futebol e um campo de ténis. Ali habita também um agrónomo que se ocupa das plantações de borracha do Estado e vigia e aconselha os autóctones nas diversas culturas, nomeadamente do arroz de sequeiro. Um agente sanitário belga (com preparação universitária) percorria, com três enfermeiros congoleses todas as aldeias pertencentes à área, no despiste de todas as doenças tropicais. A malária, a lepra, a doença do sono e as doenças venéreas eram as que mereciam mais cuidados.
Para além de uma Missão protestante sob a direcção de um pastor inglês, Mr. Hansens, havia também uma Missão católica com a respectiva Catedral e um convento de freiras, pertencentes à Missão inglesa de Mill – Hill. Era ali que funcionava uma espécie de escola profissional dirigida por frades e onde se formavam os artífices das mais variadas profissões: pedreiros, pintores, carpinteiros, electricistas, etc. etc. Era de facto uma verdadeira escola profissional, pois todos os alunos exerciam as suas profissões na Missão, desenvolvendo os seus conhecimentos pela prática de trabalhos efectuados "in loco" em benefício da própria escola. Embora esta prática fosse condenada por alguns, porque os "operários" não auferiam qualquer salário, o certo é que a alimentação e os cuidados de saúde eram-lhes prestados gratuitamente o que, quanto a mim, com o "diploma" ou apenas com a prática que adquiriam, lhes proporcionava um ganha-pão que poderiam usar pela vida fora. E isso acontecia com frequência, pois quando havia obras de maior vulto era à Missão que se iam procurar os especializados.
A Catedral era construída em tijolo, feito, prensado e seco no próprio local e tinha sido edificada por "alunos."
Era lá que todos os domingos se reuniam, para além de muitos indígenas vindos de todos os cantos da circunscrição de Mompono, os estrangeiros católicos da região. Depois da Missa o Superior da Missão, um ancião de corpo franzino e de barbas compridas e brancas, fazia questão de nos reunir todos no átrio da casa paroquial para a habitual chávena de café que se seguia uma troca de impressões sobre os mais variados assuntos, com especial destaque para as notícias da Europa.
Esta Missão tinha quatro missionários itinerantes que percorriam os quatro cantos da "Paróquia", quase sempre a pé. Faziam centenas de quilómetros catequizando e celebrando missas. Por vezes andavam semanas pelo interior alimentando-se de frutos, e de alimentos, ovos, peixe ou carne que os indígenas lhes davam e que eles preparavam para comer.
Algumas vezes acolhemos em nossa casa, e de passagem, alguns desses homens que chegavam exaustos e com os pés doridos. Mal chegavam, perguntavam se podiam tomar banho, comiam depois e, muitas vezes, adormeciam à mesa, tal era o cansaço...
Sempre admirei esses homens que renunciando a tudo, se embrenhavam por veredas estreitas, floresta adentro, pregando a doutrina de Cristo.
Só quem alguma vez viveu situações destas e sabe o quão difícil é percorrer as pistas da floresta tropical com todos os perigos que daí podem advir pode dar o valor merecido a semelhantes mensageiros da Fé!
Refiro-me ainda à Missão católica de Mompono, só para sublinhar uma coincidência: um dos padres dessa Missão, meu amigo e orientador espiritual, o padre holandês Van-Kester, entretanto elevado a Bispo, celebraria, mais tarde, em Basanksu, o meu casamento...
RECORDAÇÕES DE ÁFRICA - A Viagem
A minha primeira casa em África ( 1950 - 1955)
A floresta bordejava a estrada de terra batida e, por vezes, um macaco que saltava de um ramo para outro, um pássaro que, assustado, batia as asas e fugia ou um antílope que atravessava a pista, eram "novidades" que me faziam esquecer o desconforto e a dureza do transporte.
Quando parávamos em alguma aldeia, os nativos logo se aproximavam com cachos de bananas, ananases, ovos e outros produtos que ofereciam esperando qualquer coisa em troca – cigarros, sal, ou qualquer bugiganga. O motorista, um negro espadaúdo, sempre a sorrir, lá me ia pondo ao corrente dos usos e costumes daquela gente, no seu francês mascavado...
Seria fastidioso descrever toda a viagem...
Parámos em Samba, numa plantação de café de portugueses e logo a seguir atravessámos o rio Maringa com a camioneta sobre uma jangada movida por doze remadores que subiam primeiro contra a corrente e depois desciam em direcção à outra margem.
Chegámos ao destino a meio da tarde. Uma viagem um pouco longa e desconfortável, mas à qual os meus 24 anos enfrentaram com alegria e espírito de aventura.
À chegada, um homem branco, magro, de cabelos brancos, esperava-nos, sentado numa cadeira de verga, numa varada de uma casa coberta com uma espécie de colmo – a minha primeira casa sob os trópicos, longe de tudo, mas da qual guardo ternas recordações e cuja fotografia, velhinha, podem ver no começo desta crónica.
À volta um grande terreiro rodeado de seringueiras, e uma sebe de arbustos de cambiantes variados, como todas as plantas espontâneas que nascem nas densas florestas tropicais. A nossa chegada devia ter sido anunciada, dada a recepção que tivemos: muitos negros, homens, mulheres e crianças rodearam-nos e não paravam de gesticular e trocar impressões numa língua que eu não conhecia...
Seguiram-se as apresentações e a visita aos meus futuros aposentos. A casa tinha dois quartos, uma cozinha e um grande salão. A casa de banho estava no exterior da casa e vale a pena fazer a sua descrição: Imaginem um pequeno espaço redondo com um raio de dois metros com uma vedação de paus entrelaçados e folhas a tapar a vista; uma foça árabe que servia para satisfazer as necessidades fisiológicas e, lá no alto um balde de zinco com um crivo no fundo e um cordão que tinha a função de abrir uma válvula e fazer com que a água saísse – era o chuveiro!...
Na casa, a mobília, era a mínima necessária: nos quartos uma cama tosca com o imprescindível mosquiteiro, janelas todas com rede, sem portadas e nada mais; no salão uma mesa, algumas cadeiras muito puídas e dois maples aos quais era impossível atribuir idade; na varanda uma mesa rudimentar e três ou quatro cadeiras de verga. Na parte de trás da casa e logo na pequena escada que dava para a "casa de banho", uma bacia de zinco sobre um cavalete de madeira, uma encardida concha onde repousava um pedaço de sabão azul e uma toalha pendurado num prego... Havia ainda um pequeno compartimento que servia de despensa e onde eu arrumei logo os alimentos que tinha comprado, enlatados claro: manteiga (holandesa, muito boa); queijo (holandês também) conservas (portuguesas) bacalhau (ido de Portugal em caixas de alumínio); azeite (português, Galo d'Ouro); sardinhas, carapau e atum, também embalados em Portugal e...um garrafão de vinho tinto "Nabão", além de outras coisas...
Foi assim a minha chegada a uma localidade mesmo sob a linha imaginária do Equador e dessa maneira mais um português se juntou a muitos outros espalhados pelos mais recônditos locais desse imenso território que era o Congo Belga, hoje República Democrática do Congo.
A floresta bordejava a estrada de terra batida e, por vezes, um macaco que saltava de um ramo para outro, um pássaro que, assustado, batia as asas e fugia ou um antílope que atravessava a pista, eram "novidades" que me faziam esquecer o desconforto e a dureza do transporte.
Quando parávamos em alguma aldeia, os nativos logo se aproximavam com cachos de bananas, ananases, ovos e outros produtos que ofereciam esperando qualquer coisa em troca – cigarros, sal, ou qualquer bugiganga. O motorista, um negro espadaúdo, sempre a sorrir, lá me ia pondo ao corrente dos usos e costumes daquela gente, no seu francês mascavado...
Seria fastidioso descrever toda a viagem...
Parámos em Samba, numa plantação de café de portugueses e logo a seguir atravessámos o rio Maringa com a camioneta sobre uma jangada movida por doze remadores que subiam primeiro contra a corrente e depois desciam em direcção à outra margem.
Chegámos ao destino a meio da tarde. Uma viagem um pouco longa e desconfortável, mas à qual os meus 24 anos enfrentaram com alegria e espírito de aventura.
À chegada, um homem branco, magro, de cabelos brancos, esperava-nos, sentado numa cadeira de verga, numa varada de uma casa coberta com uma espécie de colmo – a minha primeira casa sob os trópicos, longe de tudo, mas da qual guardo ternas recordações e cuja fotografia, velhinha, podem ver no começo desta crónica.
À volta um grande terreiro rodeado de seringueiras, e uma sebe de arbustos de cambiantes variados, como todas as plantas espontâneas que nascem nas densas florestas tropicais. A nossa chegada devia ter sido anunciada, dada a recepção que tivemos: muitos negros, homens, mulheres e crianças rodearam-nos e não paravam de gesticular e trocar impressões numa língua que eu não conhecia...
Seguiram-se as apresentações e a visita aos meus futuros aposentos. A casa tinha dois quartos, uma cozinha e um grande salão. A casa de banho estava no exterior da casa e vale a pena fazer a sua descrição: Imaginem um pequeno espaço redondo com um raio de dois metros com uma vedação de paus entrelaçados e folhas a tapar a vista; uma foça árabe que servia para satisfazer as necessidades fisiológicas e, lá no alto um balde de zinco com um crivo no fundo e um cordão que tinha a função de abrir uma válvula e fazer com que a água saísse – era o chuveiro!...
Na casa, a mobília, era a mínima necessária: nos quartos uma cama tosca com o imprescindível mosquiteiro, janelas todas com rede, sem portadas e nada mais; no salão uma mesa, algumas cadeiras muito puídas e dois maples aos quais era impossível atribuir idade; na varanda uma mesa rudimentar e três ou quatro cadeiras de verga. Na parte de trás da casa e logo na pequena escada que dava para a "casa de banho", uma bacia de zinco sobre um cavalete de madeira, uma encardida concha onde repousava um pedaço de sabão azul e uma toalha pendurado num prego... Havia ainda um pequeno compartimento que servia de despensa e onde eu arrumei logo os alimentos que tinha comprado, enlatados claro: manteiga (holandesa, muito boa); queijo (holandês também) conservas (portuguesas) bacalhau (ido de Portugal em caixas de alumínio); azeite (português, Galo d'Ouro); sardinhas, carapau e atum, também embalados em Portugal e...um garrafão de vinho tinto "Nabão", além de outras coisas...
Foi assim a minha chegada a uma localidade mesmo sob a linha imaginária do Equador e dessa maneira mais um português se juntou a muitos outros espalhados pelos mais recônditos locais desse imenso território que era o Congo Belga, hoje República Democrática do Congo.
segunda-feira, setembro 07, 2009
RECORDAÇÕES DE ÁFRICA - A floresta equatorial
Vista de cima, a floresta equatorial é um verdadeiro mar interior em que as suas ondas de verdura se estendem a perder de vista. Ela ocupa o interior de uma depressão em forma de bacia e cobre quase da metade setentrional do país, desde o lago Tumba até aos contrafortes do Ruwenzori.
Ela cresceu no lugar de um imenso lago pré-histórico do qual restam apenas os lagos Mai Ndombe e Tumaba.
O terreno, quase sempre pantanoso é o lugar de predilecção de uma fauna inumerável onde estão representados todos os géneros. Mas é, sobretudo o seu solo extraordinariamente rico que é favorável à vegetação.
Pela estrada, logo que ultrapassa os espaços ocupados pelas aldeias, o viajante é brutalmente rodeado por essa massa vegetal que lhe impõe respeito. O intruso, o temerário que se arrisque a entrar nela, pouco tempo depois desistirá e retomará o ponto de partida com um certo alívio.
Os que a conhecem melhor, o caçador, o feiticeiro não se aventuram para além das clareiras, das margens dos rios e das pistas que a serpenteiam sob um emaranhado verde onde nem o sol entra.
Apesar de existirem muitas lendas a dizer o contrário, tanto as caçadas, como as suas misteriosas feitiçarias e encantamentos têm sempre lugar perto das aldeias.
Numa extensão de milhares de quilómetros quadrados balanceia a mesma cortina de verdura viçosa, densa e uniforme. E esta demonstração extraordinária de vitalidade, de majestosa força, esconde um tal mistério, um desafio tão desigual para o homem que o leva a que fale dela sempre com uma deferência especial.
Mesmo para os seus familiares mais íntimos, a orgulhosa floresta virgem do Equador, despe-se apenas através de pequenas clareiras periféricas.
Apesar disso ela constitui a mãe protectora e alimentícia, fornecendo tudo: carne, tubérculos, legumes, cogumelos variados e até os seus medicamentos com virtudes incontestáveis, cujas técnicas de fabricação continuam preciosamente guardadas correndo até o risco de se perderem na eterna noite da selva.
Assim, o visitante tem de contentar-se de ver apenas da beira da estrada, da picada, as palmeiras, os aloés, as ráfias, várias espécies de coníferas e outras árvores exóticas ao troco das quais se enroscam lianas que sobem a trinta ou quarenta metros em busca de um lugar ao sol.
São várias as espécies de madeiras preciosas da floresta equatorial que podem ser utilizadas na indústria de móveis ou na de construção, destacando-se, entre outras as espécies: mépépé, émien, mukulungu, iroko, mubangu negro, tola, limba, wenge e a tshitola. Muitas outras podem servir para a obtenção de pasta para papel.
A floresta equatorial do Congo continua intacta, rica, extensa, no resto do mundo os efeitos combinados da indústria, do urbanismo e os incêndios, fazem da madeira uma matéria-prima essencial.
É por isso que com todo este potencial a floresta virgem equatorial poderá vir a servir de base para um novo pólo de desenvolvimento económico para a província do Equador e, logicamente, para o país.
Entretanto e enquanto ela não for violada pela máquina e devorada pelas indústrias modernas, orgulhosa, ela continuará a reinar serenamente guardando os seus mistérios e muitas riquezas no seu subsolo.
domingo, setembro 06, 2009
RECORDAÇÕES DE ÁFRICA -Partida para o interior
O casal que estava à frente da loja de víveres da Macodibe era um casal excepcional – simpático, culto e acolhedor como poucos. Ele, cunhado do actor Álvaro Benamor, era um mestre a contar anedotas e a cozinhar... Ela, D. Isabel, grande apreciadora de Ópera (com uma colecção de discos das melhores, invejável!) era também, com a sua cultura e educação, uma senhora em toda a acepção da palavra. Não admira, por isso, que a casa do casal Ferraz, em frente do Super-Mercado, servisse de ponto de reunião de todos: viajantes e residentes.
Alguns dias depois de ter chegado e numa dessas reuniões, um desses representante de uma Companhia holandesa de Lepoldville, alfacinha de gema, alvitrou que se convidasse o "recém-chegado agente da Macodibe" para uma caçada aos gambozinos!... Todos, em coro, aplaudiram a ideia. Eu limitei-me a ouvir as instruções, pois já as tinha dado, por várias vezes, a veraneantes que vinham de Lisboa passar férias na minha aldeia...
Deram-me um saco de ráfia e lá fomos todos (uns oito) a caminho do aeródromo, numa carrinha, munida de um farol no tejadilho. Puseram-me então no início da pista, saco na mão, recomendando que devia assobiar primeiro e depois guardar o silêncio com o saco aberto, à espera que os gambozinos entrassem no saco... Eles iam por outro lado espantar os bichos e fazer com que eles se encaminhassem para a ratoeira... Logo que os pressenti longe, peguei no saco e eis-me a caminho de casa, a pé... Percorri assim cerca de dois quilómetros e quando cheguei a casa é difícil descrever a surpresa de D. Isabel, ela também a par da marosca... Contei-lhe então que a artimanha, para mim, era já muito velha e já a tinha aplicado a muitos "pacóvios"... Cerca de duas horas depois chegaram os promotores da "partida" e é fácil adivinhar a sua surpresa e frustração, ao verem-me sentado numa cadeira de verga a saborear, sorridente, o meu uísque!...
Isso constituía uma espécie de praxe para com os novatos que chegavam e, mesmo no interior, quando ali cheguei, também fui sujeito a uma outra brincadeira...
Um dia fui chamado ao escritório da Sede onde me informaram que o meu local de trabalho, se situava a cerca de 300 quilómetros – no distrito da Thsuapa, comarca de Befale, circunscrição de Mompono, aldeia de N'gongo. Partiria dentro de dois dias, teria que comprar o necessário, isto é: acessórios de cozinha, alimentos (enlatados) roupas, etc., etc., ...
Não sei se ainda se lembram das camionetas que começaram a circular logo após a última grande guerra: eram veículos sem quaisquer comodidades. A suspensão fazia-se por intermédio de molas muito rijas e a cabina que consistia apenas numa chapa rugosa sem forro, com bancos de madeira cobertos com uma espécie de almofada cheia de folhas, geralmente de palmeira... E foi nesse transporte de luxo que eu fiz a viagem até N’gongo. Tudo era novo para mim. E encantador!...
sábado, setembro 05, 2009
RECORDAÇÕES DE ÁFRICA - A Macodibe
Edição n.º 911 de 02 de Outubro de 2008
A Macodibe era uma das maiores empresas portuguesas do Congo, e tinha a sua sede em Basankusu, na província do Equador, e um escritório em Leopoldville que se encarregava de transaccionar os produtos vindos do interior.
De Basankusu a Mondjulongo quase a fazer fronteira com a então África equatorial francesa, a Companhia tinha feitorias um pouco por toda a parte, sobretudo nas margens dos rios que, como já disse, eram todos navegáveis. Em Basankusu, além dos escritórios que coordenavam todos os sectores do interior, um grande armazém no porto fluvial do rio Tshuapa, acolhia todos os produtos vindos dos diversos postos, sobretudo o copal, uma resina que os indígenas extraiam dos pântanos e que era expedida sobretudo para a Inglaterra para fazer vernizes. A companhia possuía ainda várias casas na vila e uma loja mista a que hoje se podia chamar Super-Mercado. Era ali que a população estrangeira se abastecia do necessário para viver, mas sobretudo de produtos alimentares vindo da Europa e também da África do Sul e de Angola. Basankusu era uma pequena cidade do interior, com a respectiva Mairie (Câmara Municipal), uma Catedral (onde mais tarde seria celebrado o meu casamento), e dotada de uma Agência bancária; de um Hospital com instalações modernas para a época e com uma equipa médica de grande nomeada; de um destacamento da "Força Pública" comandado por um oficial belga que assegurava a segurança; de um Hotel, propriedade de um português, o Castanheira, que albergava as gentes de passagem; uma sala de cinema improvisada numa dependência da Câmara Municipal e um Centro de convívio onde se reuniam os habitantes do aglomerado.
Saindo de Basankusu por estrada em direcção à fronteira com a África francesa, a Macodibe, possuía várias feitorias de indústria e comércio, nomeadamente, a de Balangala, (Plantação e fábrica de óleo de palma); a de Falanga, (fábrica de óleo de palma e plantação de palmeiras e de cacau); a de Baringa, (porto fluvial com um armazém que servia para juntar os produtos até serem embarcados); a de Ingende, (plantações de árvores da borracha e fábrica de transformação); a de Lifumba (exploração florestal para a exportação e serração); a de Boende (fábrica de descasque de arroz e supermercado), a de N’gongo (plantações de árvores de borracha, de palmeiras, e de café com as respectivas fábricas): a de Mompono (com um entreposto de armazenagem junto ao rio e várias lojas de comércio); a de Kailanga (fábrica de óleo de palma e criação de bovinos); a de Mundjolongo a 1.000 km de Basankusu (com plantação de café, fabricas de descasque de arroz, de café e lojas de comércio). Noutras aldeias, situadas nesses percursos, possuía ainda várias lojas de comércio, à frente das quais se encontravam negros naturais da região – os "Capitas" (nome por que eram designados os capatazes ou gerentes).
Permaneci na cidade cerca de dois meses e foram várias as peripécias por que passei, com especial relevo para a caça aos gambozinos. Eu conto: Basankusu, era o lugar de passagem e paragem de todos os viajantes das grandes empresas comerciais com sede em Lepoldville. Eles percorriam todo o Congo, visitando os clientes espalhados pelos lugares mais recônditos do país e permaneciam mais tempo nos locais onde a clientela era mais importante. Basa (abreviação de Basankusu) era o ponto de encontro de quase todos eles. Nesse tempo, em África, ainda não havia rivalidades comerciais e os viajantes reuniam-se todos, ao serão, para uma partida de bisca lambida, sueca ou bridge, ou para uma sessão de anedotas molhadas com uns bons uísques...
sexta-feira, setembro 04, 2009
RECORDAÇÕES DE ÁFRICA- O meu quintal tropical
À volta da minha casa, da qual já vos fiz a descrição mais atrás, tínhamos um quintal onde cultivávamos alguns legumes. Poucos, porque o Sol tropical não o permitia. Lembro-me, no entanto, de termos semeado couve-flor que depois transplantámos, aliás, sem grande esperança de que vingassem. Mas vigaram. E só não as comemos, porque os meus dois filhos se encarregaram de as cortar para trazer à mãe julgando que eram mesmo flores!...
Mas como podem apreciar pelas fotos, fruta era coisa que não nos faltava: bananas, ananases, goiabas, mangas, papaia, laranja, toranja e outros frutos tropicais menos conhecidos, estavam ali à mão de semear…
Apesar do calor abrasador a terra é fértil, pois as chuvadas tropicais compensam e ajuda a germinação. Se lançarmos uma semente à terra, mesmo que não cuidemos dela, ela “desenrasca-se” e desenvolve-se sozinha. É o caso, por exemplo, do milho, do arroz de sequeiro, além de outras espécies que se desenvolvem sem quaisquer ajudas humanas.
Lembrei-me hoje das frutas do meu quintal tropical do Ngongo, porque comi hoje o primeiro cacho de uvas do meu quintal beirão apanhado, directamente, da videira, sem passar por qualquer câmara fria ou frigorífico.
E daí que me tenha “lembrado”de como são diferentes os sabores, como é diferente o natural do “enlatado”…
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