quinta-feira, outubro 22, 2009

Reflexões de Outono


Uma das vantagens que o amontoar dos anos nos confere é podermos estabelecer uma comparação entre passado e presente e pôr em confronto épocas, gentes, formas de viver e até maneiras de pensar.
Muitos dos equívocos da história residem no facto de se avaliarem situações ou pessoas, sem que previamente haja um conhecimento sério dos factores inerentes à época em causa. Todos nós somos o produto de um determinado tempo, de um determinado meio, de um determinado lugar e de uma determinada condição. Por isso, quando se fala de passado, e antes de criticar, há que ter em conta todos esses factores.
Hoje em dia, nomeadamente no que diz respeito à política, é moda criticar-se tudo e todos. Desde o passado remoto, até ao passado recente. E as críticas vêm dos mais variados quadrantes!
A mim, o que mais me impressiona é o descaramento com que, pessoas cuja idade não lhes permite ir mais para atrás do que as três ou quatro últimas décadas; que nem sequer estão habilitadas a falar do presente, porque não participam nele, (alguém o faz por eles!...) emitem opiniões depreciativas ou tentam apagar da História pessoas ou factos que a marcaram e que são dela indissociáveis. A esses indivíduos, costumo eu chamar "pequenos homens". Ou "crianças grandes", vestidas a rigor, de fato e gravata, mas com a cara lambuzada de guloseimas.
O homem verdadeiro e completo só se constrói pela luta que mantém ao longo dos sucessivos e variados confrontos com os obstáculos que a vida coloca no seu caminho.
Mostra-nos a experiência que a falta de esforço e de treino para ultrapassar essas barreira, conduz a um amolecimento prematuro e também à erupção de sentimentos egoístas e mesquinhos que se traduzem geralmente por exigências desmedidas, facilitismo ostensivo e, até, por vezes, ultrajante! Essa espécie de homens não tem quaisquer noções da realidade do dia-a-dia. Tudo lhes caiu do Céu. A vida é um pronto-a-vestir, uma feira de vaidades, onde encontram tudo. É chegar, escolher e usar, porque alguém há-de pagar!...
E é daí que resulta a proliferação dos inúteis e dos parasitas que vão vivendo acoitados sob as asas de uma sociedade super-protectora que os leva pela mão, que lhe remove as pedras e lhes alcatifa o caminho.
E como é fácil viver nesse mundo irreal, fechando os olhos à miséria e fazendo orelhas moucas aos gemidos dos que sofrem! Mas mal o dinheiro escasseia...
O resultado, ilustrado com retratos nem sempre muito claros, entra-nos todos os dias pela porta dentro em letras gordas e cores berrantes, por intermédio dos Jornais; com entoações dramáticas através da Rádio, ou em imagens sugestivas e apropriadas via televisão. Subornos, corrupções, e negócios escuros vão alimentando essa cáfila de barriguistas militantes.
Podem dizer-me que também já havia barrigas grandes nesse tempo que agora tanto se critica. É verdade. E volto ao princípio, às tais vantagens da idade e das comparações. Já havia, sim! Só que, e ao contrário do que acontece hoje, era fácil contá-las. E era simples saber como se enchiam…

segunda-feira, outubro 05, 2009

RCORDAÇÕES DE ÁFRICA - AS PLANTAÇOES DE N'GONGO



Árvores da borracha
Passados dois dias fiquei sozinho com cerca de trezentos trabalhadores que se dividiam pela exploração da borracha, extracção do óleo de palma e outros trabalhos. Havia pedreiros, carpinteiros, trabalhadores de limpeza da plantação, caçadores, pescadores e vários outros sem trabalho certo.
Muitos viviam nas senzalas vizinhas e cerca de metade habitava na plantação, em casas construídas com blocos de terra secos ao sol e tijolo feitos manualmente no local ou ainda em palhotas cobertas com folhas secas, uma espécie de colmo.
Os pescadores e caçadores tinham por missão pescar e caçar e trazer a caça que era distribuída gratuitamente pelos trabalhadores. O rio Maringa era muito rico em peixe. As espécies eram muitas e desde o peixe pequeno, passando pelo médio e terminando no crocodilo, havia sempre pescado com abundância. Da caça pode dizer-se o mesmo. Desde o pequeno antílope, passando pelo macaco, pela galinhola e terminando no boi selvagem, havia quase sempre carne para distribuir. Quando, por ventura, víamos que era de mais, mandávamos secar e, assim, ficávamos com uma reserva... Uma vez até se distribuiu pelos trabalhadores um hipopótamo! Mas isso vou contar mais à frente.
A plantação de borracha tinha uma extensão de 300 hectares e estava dividida em vários talhões, cada qual com cerca de 300 árvores e que eram atribuídas a cada "sangrador" para, todos os dias, fazerem a colheita do látex.
Como atrás disse, a chamada era feita cedo e os homens entravam na plantação logo que a manhã rompia. A incisão nas árvores tinha que ser feita por essa altura, pois mal o sol começasse a aquecer, o látex ia coagulando lentamente até que uma fina película acabava por tapar a ferida interrompendo assim a sangria. Entretanto os capatazes iam percorrendo os vários talhões para verificar se o trabalho tinha sido feito convenientemente. Isso para evitar que os "sangradores" – o que era muito frequente – por preguiça, deixassem algumas árvores sem fazerem a respectiva incisão.
Cerca das dez horas, o encarregado de tocar a "ngonga" (um tronco oco, feito a propósito e que produzia um som que se ouvia longe) batendo com as duas maçanetas, indicava que podiam recolher o látex que tinha escorrido para uns pequenos copos redondos de alumínio.
Os "sangradores" despejavam então os copos para um recipiente de 30 litros, em alumínio e, por fim uma camioneta transportava-os para a fábrica que estava situada junto ao rio.
Um grande hangar coberto com folhas de zinco abrigava as máquinas e os tanques onde se tratava o látex. O conteúdo dos recipientes, – depois de pesado e o seu peso ter sido posto num registo geral e em cada um dos livros de cada trabalhador para o prémio de rendimento no fim do mês – era dividido pelos vários tanques de cimento revestidos com azulejos. Adicionava-se então uma quantidade de água proporcional aos litros ou quilos de látex vazados, mexia-se e adicionava-se, misturado com água, uma quantidade previamente calculada de ácido fórmico para acelerar a coagulação. Logo a seguir e nas ranhuras existentes nos tanques colocavam-se placas de alumínio o que dava origem a que a mistura coagulasse e ficasse em placas finas com cerca de 2 cm de espessura. Cerca de três horas depois, retiravam-se as placas de alumínio e tínhamos então folhas espessas. Essas folhas eram passadas por várias calandras ou prensas que as achatavam e ao mesmo tempo lhes tiravam a água que traziam. Por último passavam por uma outra calandra de cilindros estriados que fazia nas folhas uns opérculos como nos favos de mel das abelhas. Esta operação tinha como finalidade ajudar a fazer uma secagem mais rápida.
As folhas eram então levadas para um secador a lenha e aí ficavam penduradas por um período entre os 4 e 8 dias. Depois de bem secas, as folhas apresentavam uma cor amarelada e já não se colavam.
Eram então transportadas para a secção de embalagem onde eram escolhidas e embaladas para exportação. A escolha obedecia a certos requisitos e conforme as características assim eram classificadas em: "Sheets I, Sheets II, Sheets lll, Lumps e Scraps, e embaladas em fardos de 50 quilos e expedidas por barco para a Bélgica, Inglaterra ou Angola, via Leopoldville.

Plantação de palmeiras
Havia também, mesmo junto ao rio, a fábrica do óleo de palma. Era composta por uma autoclave para cozer os frutos da palmeira, (dendê) um malaxador para separar a polpa da noz do fruto de palma, uma centrifugadora para extrair o óleo, um triturador para partir a noz e extrair o coconote e uma caldeira a vapor para fazer girar tudo isso.
A concessão de 50 hectares era pouco produtiva e dois camiões percorriam os arredores para comprar fruto aos indígenas. Todos os dias eles saíam e percorriam o mesmo percurso de cerca de 100 quilómetros ida e volta. Havia também uma baleeira que subia o rio e ia comprando fruto de palma aos indígenas que habitavam nas margens. Levava sempre sal, fósforos, espelhos e catanas, pois os homens da beira-rio, preferiam a permuta ao dinheiro.
O óleo era, depois de filtrado, metido em tambores de 200 litros e expedido também por barco para Bruxelas ou Luanda, via Leopoldville. O coconote seguia o mesmo caminho.
As borras do óleo serviam depois para fazer sabão que era vendido nas cantinas e nos arredores.

sábado, outubro 03, 2009

RECORDAÇÕES DE ÁFRICA - Testemunhos

Mapa da viagem
«O viajante que percorre a África, ao chegar ao Congo Belga, fica impressionado com o trabalho deveras notável que ali se realizou em tão pouco tempo.
Não pretendemos, num trabalho desta natureza, apreciar afundo tudo o que ali tem sido feito em pouco mais de meio século. Vejamos, por exemplo, como é concedida a assistência sanitária ao indígena: cada distrito possui seis a oito hospitais. Visitámos um hospital-tipo, igual a todos os outros, que faria corar de inveja muitos hospitais de cidades europeias, provido de pavilhões separados para homens e mulheres, instalações de Raio X, dois laboratórios, uma bem apetrechada sala de operações, uma sala para partos e diversos anexos.
Suponhamos, por exemplo, que um indígena se encontra doente a cem quilómetros do hospital mais próximo: recebido o apelo, imediatamente uma ambulância se desloca a recolhê-lo, hospitalizá-lo, tratá-lo fornecendo-lhe os alimentos e remédios, operá-lo, se necessário for, tudo isso sem despender um centavo. Na hipótese de o indígena ser empregado, a firma empregadora pagará uma taxa insignificante.
Vejamos agora alguns números que me foram fornecidos gentilmente pelo director desse estabelecimento hospitalar: leitos, 250; intervenções cirúrgicas, 350 por ano; partos 1.200 por ano.
O Governo belga constrói activamente em pedra casas para os indígenas destinadas a substituir as pitorescas mas anti-higiénicas palhotas. Leis são promulgadas destinadas a proteger o indígena, muitas vezes – diga-se de passagem em detrimento do colono branco… Isto e muito mais no que diz respeito à assistência ao indígena.
Tem sido notabilíssima a obra de aproveitamento do solo, desenvolvimento industrial, exploração do subsolo, etc. Tudo isto tem sido possível m virtude das enormes facilidades concedidas pelo Governo belga os colonos de todas as nacionalidades Créditos bancários são igualmente concedidos com a maior facilidade. Esta é, na realidade, a verdadeira razão da prosperidade no Congo Belga: facilidades, sempre facilidades em tudo. Um colono deseja abrir um estabelecimento? Muito bem…Abre o estabelecimento e tem um mês ou dois para tratar das respectivas autorizações, com a s formalidades reduzidas ao mínimo. Deseja uma audiência de alguma alta individualidade? Muito bem… Apresenta-se com o seu traje de trabalho, em mangas de camisa, sem gravata e é imediatamente recebido.
Eis em poucas linhas o que tem sido o belíssimo trabalho de colonização executado pelos belgas em sessenta anos.
Porém, atrás desse, há outro que talvez lhe não seja inferior: o trabalho executado pelos portugueses.
Falando correctamente a língua dos indígenas, os portugueses, em meados do século passado foram os primeiros comerciantes a estabelecer-se no Congo.
Conversei com alguns velhos comerciantes que, com risco da sua vida, entraram em contacto com indígenas que nunca tinham visto um branco, algumas tribos com reputação de antropofagia, estabelecendo feitorias portuguesas por todo o Congo, encontrando-se compatriotas nossos nas regiões mais remotas, onde num raio de cem quilómetros não se encontra um branco. (…) A colónia portuguesa do Congo Belga goza hoje de um grande prestígio, que muito honra o País…»
Do “Roteiro Africano”( 1955), um livro de Fernando Laidley, primeiro a efectuar a nível mundial a primeira volta à África em automóvel ( um “carocha”),páginas 153/4:

RECORDAÇÕES DE ÁFRICA - A Ngonga


Um pouco atrás referi-me a este instrumento, mas penso que vale a pena determo-nos um pouco e falarmos sobre esse tradicional instrumento de comunicação africano.
Aqueles que viveram as emoções das duas grandes “caçadas aos brancos”em 1960 e 1964 conhecem bem o papel desempenhado por ele nesse período.
Num tronco de árvore, um especialista, uma espécie de marceneiro, retira o miolo abrindo um corte longitudinal. Deixa que o tronco seque e vai depois, batendo com duas maçanetas de madeira, abrindo o corte, procurando obter o som desejado. Alcançado esse objectivo, está a "ngonga" pronta a entrar ao serviço...
Esse instrumento de percussão era usado na plantação para anunciar a chamada dos trabalhadores, a recolha do látex ou fora destes dois casos para reunir todo o pessoal para qualquer comunicação.
No entanto não era qualquer um que podia fazê-lo, pois há toques diferentes e muitas vezes ouvíamos a “ngonga” de uma aldeia vizinha, cujo toque (para os indígenas) significava que tinha morrido alguém ou que qualquer outro facto importante tinha acontecido…
Havia uma espécie de escala musical que era interpretada consoante o respectivo acontecimento.
Era uma maneira de comunicação entre aldeias. Na plantação e para que o som chegasse mais longe, a ngonga
estava colocada no cimo de uma termiteira com cerca de três metros de altura.
Como acima já disse, aquando das rebeliões, tanto da de 1960 como da de 1964, a ngonga foi um dos meios de comunicação que, sobretudo nas regiões do interior onde me encontrava, facilitou muito o “trabalho”dos rebeldes, dando-lhes indicações da movimentação dos europeus, o que levou às atrocidades de que todos tiveram conhecimento.