domingo, março 04, 2007

Coisas da minha arca




No tempo em que o volfrâmio era explorado em força cá pelas nossas bandas, contavam-se várias anedotas acerca do rápido enriquecimento de alguns indígenas. De todas as que corriam de boca em boca, uma ficou-me gravada na mente e recordo-a com frequência. Esclareço que naquela altura e nos locais e proximidades dos lugares de extracção do minério, não só era moda como também conferia uma certa importância ostentar, pendurada no pequeno bolso exterior esquerdo do casaco, uma caneta-tinteiro ou caneta de tinta permanente, como vulgarmente se dizia. Havia mesmo quem pendurasse três ou quatro bem alinhadas!
Contava-se então que um desses ricaços se dirigiu um dia a uma papelaria em Viseu e pediu que lhe vendessem uma caneta de tinta permanente, mas das mais caras – uma Pelikan em ouro... Essa marca era, na época, uma das mais conhecidas e reluzentes.
O dono do estabelecimento lá veio com vários estojos, onde repousavam vários estilos de canetas. O homem pegou numa, pegou noutra, mirou, remirou, lá se decidiu e comprou duas... Puxou duma nota de conto e com a bazófia própria dos novos-ricos, atirou do alto da sua "importância": - «Pode ficar com o troco...» O vendedor, habituado já às características esbanjadoras de tais clientes, arrecadou a nota mas, cumpridor do seu dever e para descargo da sua consciência ainda balbuciou: - «Vossência tem aqui papel para experimentar o aparo...» Ao que, prontamente, o volframista retorquiu já com os dois objectos a enfeitarem o bolsinho: - «Não vale a pena. Eu até nem sei escrever...»
Dizia eu no começo que esta anedota me vem à mente muitas vezes. O motivo que hoje a fez "ressuscitar" foi o facto de verificar, há dias, que a quantidade de percursores, de obreiros, de heróis, de analistas e de comentaristas, não pára de aumentar de ano para ano. Não há bicho-careta que não discorra e faça comparações entre a escravatura do antigamente e as liberdades da democracia!
E o que, na minha opinião, é mais flagrante e comprometedor para o futuro, é que essa cultura inculta começa a enraizar-se nas camadas jovens fazendo com que a soma de "analfabetos históricos" no nosso espaço político-partidário atinja já números bastante significativos. Criados em aviários, com a luz acesa toda a noite, tremonhas a abarrotar, bebedouros a transbordar, papo cheio, que mais é preciso para anquilosar o raciocínio? Não é a realidade histórica – porque é humana – equívoca e inesgotável?!...
Aos volframistas de canetas reluzentes dos meus tempos de miúdo, sucedem agora os "garimpeiros", versão começo-de-século, pseudo-detentores de toda a sapiência, enfarpelados a rigor, encadernados em potentes "máquinas", alguns comendo ainda à custa dos pais!
A única diferença entre os bazófias de ontem e os de hoje, talvez resida no facto de os primeiros não saberem ler nem escrever e os segundos serem letrados, embora haja muitos doutores analfabetos pelo meio…
O que me leva a crer que o futuro do homem do século XXI será sapientemente civilizado. E humanamente bárbaro…