quarta-feira, julho 29, 2015

A ESCOLHA


A sua casa foi assaltada. Você foi roubado e agredido. Acidentalmente, o ladrão foi preso. Porém, dois dias depois, encontra-o na rua. Ele riu-se e não contente com isso, fez-lhe aquele gesto com os braços que o Bordalo imortalizou no "toma" do Zé Povinho! E então aí, você fica furioso e revoltado. Mas não deve, porque contrariamente ao que pensa, todo o processo se desenrolou democraticamente - o gatuno desempenhou a sua missão briosamente; você foi agredido dentro das regras estabelecidas; os objectos roubados foram os mais valiosos, e os polícias, por mero acaso, capturaram o ratoneiro. O Juiz, por seu lado, desenvolveu um excelente trabalho no campo da Psicologia, pois descobriu que o larápio sofria de doença hereditária - o seu bisavô destacado membro da associação dos "Amigos do Alheio", tinha-se tornado célebre como "coleccionador" de relógios de ouro. Daí a absolvição do réu, porque a culpa é da Sociedade que permite que se fabriquem objectos caros e bonitos e não dá a todos a possibilidade de os possuírem pelas mesmas vias!...

Demonstrado assim que neste como em outros casos do género, a culpa é sempre imputada à Sociedade (isto é: a mim, a si, a eles e a elas) está já na forja uma nova lei sobre esses casos. E a lei é assim: você é atacado, ferido e roubado. Imediatamente, numa central própria, acende-se um sinal vermelho. Instantaneamente são-lhe enviados três indivíduos: um doutor-psicólogo, um doutor - médico e um doutor- polícia. Enquanto o primeiro o mentaliza de que poderia ser ainda pior, o segundo ausculta-o, extrai-lhe os restos dos dentes partidos, liga-lhe as costelas se necessário, e entrega-lhe uma receita. O terceiro, depois de examinar o local do crime, pergunta o que lhe roubaram. E entre duas fumaças do seu cachimbo, faz-lhe presente de uma requisição.

Em seguida você vai a farmácia do Estado onde lhe servirão, gratuitamente, os medicamentos. Passa depois pelo armazém Comunitário onde lhe substituirão tudo o que lhe roubaram.

E assim, democraticamente, tudo acabará bem e todos ficarão contentes: escusa de fingir o polícia, deixa de mal julgar o Juiz, beneficiará o ladrão porque não vai preso e você adquiriu objectos novos em troca dos velhos que possuía. Evidentemente que isso acarretará mais encargos para o Erário público, mas bastam uns aumentos encapotados na electricidade, nos combustíveis, nos transportes, nos impostos e... pronto!...

É certo que será uma lei polémica e votarão contra, todos os cidadãos honestos. Porém, como o seu número é cada vez menor, com certeza que ela será aprovada por maioria absoluta. Por isso, não dê ouvidos aos que andam por aí a apregoar que o futuro vai ser terrível. É mentira! Há, isso sim, duas opções: continuar pobre e honesto ou "candidatar-se" a ladrão e tornar-se milionário. Mas aí você escolhe. Democraticamente...

VIVA A VIDA!...


 

Fui e continuo a ser um apaixonado pelos escritores franceses. E isso porque durante três décadas da minha vida, - entre os 25 e os 55 anos - foram os seus livros que me serviram de companhia. De um deles, “Un Art de Vivre” de André Maurois, retive uma frase que tento adoptar, não como antídoto eficaz contra a velhice, mas como uma espécie de retardador da sua chegada.

A certa altura do livro escreveu o autor que «o verdadeiro mal da velhice não é o enfraquecimento do corpo, mas a indiferença da alma».

Acredito que esta pequena frase seja motivo de troça por parte de muita gente, mas no meu caso pessoal, como crente que sou e pelas experiências vividas, penso que nela está o segredo que me leva a gostar cada vez mais da vida.

Sou, como sabem todos aqueles que me conhecem, um homem que transporta um pesado bornal de Invernos e a maior parte vividos sem guarda-chuva.

Já passei por muitas situações - boas e más. Mas nessas minhas andanças pela vida nunca ocupei um lugar de destaque, nunca fiz um grande gesto pela humanidade, nunca me evidenciei por qualquer feito ou causa, enfim, também nada fiz para que me transformasse num herói.

Mas mesmo assim penso que tenho o direito de, pelo menos, “sonhar” com mais uns anitos, porque gosto da vida e de tudo o que ela me tem proporcionado até hoje.

Não quero adormecer para sempre. Não quero deixar os que me são queridos, as árvores e as flores do meu quintal.

Quem disse que já estou a mais e que não faria falta a ninguém? E mesmo que não fizesse, onde está escrito que isso é motivo para deixar a vida? Quem pensa assim? Os meus herdeiros? Não, porque todas as minhas participações nos diferentes e lucrativos empreendimentos que tenho no país, no estrangeiro e nos mais longínquos “Offshore”, já estão em seus nomes. Os meus inimigos? Esses também não, porque como diz o ditado “ vozes de burro...”    

Também segundo a opinião do meu médico a “coisa” não está assim tão má que não possa durar mais uns anitos. Portanto...

É curioso! Quando cheguei aos sessenta, disse cá pra comigo: até aos setenta ainda faltam dez. Depois aos setenta, baixinho, pedi para chegar aos oitenta. Agora, que já passei a capicua, esta minha vontade de viver continua cada vez mais forte.

E como é bela esta caminhada! Como é maravilhosa a Vida quando a lapidamos com o cinzel da humildade, a polimos com fraternidade e a vivemos com amor, rodeados pela família e amigos verdadeiros, sem ganância, sem ódios, nem invejas!...

 

segunda-feira, julho 20, 2015

QUATRE-VINGT-NEUF-ANS


 

Quatre-vingt-neuf ans !...

«À 20 ans, j'avais tout mon temps,
La vie était belle, puis j'étais content.
Rien n'était trop dur, rien n'était trop haut,
Aux défis de la vie je levais mon chapeau.

 

À 30 ans j'étais encore un gamin !
Ah ! C'était facile, j'avais du temps !
Puis je m'amusais, je voyageais beaucoup
Faut dire que j'ai passé des heures de fous…

 

Mais à 40 ans, j’ai fallu tomber !...
On m’a pris tout un passé !...
Et il a fallu courir, regarder en avant
Pour ne pas rester au dernier rang.


 

À 50 ans, j'étais encore capable,
Mais j'suis devenu plus raisonnable.
Mon corps ralentit, fit quelques soubresauts
Pas question de vouloir monter trop haut ! 

 

Suis-je encore bon, suis-je encore fort ?
Je fais le possible, même contre le sort…
Aux nouvelles de 22 heures parfois je m'endors,
Sans compter des moutons et ce, sans remords.


 

À quatre-vingt-neuf ans je veux être élégant
Mais mes yeux sont  faibles, mes gestes plus lents…
Mes cheveux sont partis lentement,
Et les mêmes sorts ont eu mes dents !...

 

À quatre-vingt-neuf ans j'écoute mon cœur :    
Et il est tranquille et  plein de  bonheur!...
À quatre-vingt-neuf ans ce que  j'ai compris,
C’est que quand on a fait tout ce  chemin,
En ouvrant  la fenêtre le matin,

On doit penser à Dieu… et dire MERCI !...

 

(Inspirado no poema de Jean Gabin « Maintenant Je Sais», com uns pontapés na métrica aqui e ali…)

Le  20 de Juillet 2015

quinta-feira, julho 16, 2015

EDUCAÇÃO E BOAS MANEIRAS


 

Como terão já deduzido através dos meus arrazoados semanais não nutro grande simpatia pela classe política se bem que guarde ainda na minha agenda alguns nomes pelos quais tenho respeito e admiração.

Mas devo dizer em abono da verdade, que o sentimento é recíproco, pois alguns deles, quando nos encontramos, e em especial os “recrutas”, nem sequer uma simples saudação esboçam!

Ora, na minha maneira de ser – velho e rabugento?!... – eu chamo a isto falta de educação e de boas maneiras.

Não pensem que estou a reclamar ou pedir tratamento especial. Estou a falar como povo que sou. Completamente despido de quaisquer outros predicados ou funções que em certas ocasiões possa ter ou representar. Há na sociedade normas mínimas de convivência que devem ser respeitadas e há também maneiras de estar e de proceder que não devem ser esquecidas, mormente por aqueles para quem uma quota-parte dos nossos impostos serve para no fim do mês lhes pagar o salário. Que muitos nem merecem…

Não sei quem disse uma vez que a educação e as boas maneiras constituíam uma vitória sobre a animalidade. Houve mesmo quem lhes chamasse uma espécie de “civilização de costumes.”

Além de se ostentar o rótulo de civilizado, de doutorado ou de outro qualquer produto desta nova sociedade, é necessário também possuir, ainda que  minimamente, uns polvilhos de boa educação.

A boa educação é, indubitavelmente, uma estrutura social que serve de base ao estreitamento das relações entre os homens. E é ela que não deixa e se opõe a que o social se sobreponha ao individual. Por mais que se seja, há sempre que respeitar o outro que não é!...

É essa a regra do saber viver em sociedade, de conciliar o civilizado com o educado, que faz com que nasça e se forme o verdadeiro membro duma sociedade equilibrada, humanizada e moralmente completa. A educação e as boas maneiras constituem, ao mesmo tempo, um código da comunicação entre os homens.

Muito mais poderia acrescentar sobre esta falta de educação e de boas maneiras que começa a enraizar-se na nossa sociedade. Há quem não faça caso dessas “funções sociais”, mas o certo é que sem o seu cultivo e sem a sua prática, a civilidade em breve cederá o lugar à incivilidade que por sua vez fará com que a civilização se transforme em animalidade.Talvez pareça exagerada esta minha maneira de encarar o papel das relações humanas tomando-as como alicerce da educação e das boas maneiras. Mas é bom que não esqueçamos que é da mistura desses dois ingredientes que nasce a humildade. E ser humilde para além de ser uma virtude, é uma das características das grandes personalidades.

 

 

 

 

 

 

 

NOS BRAÇOS DE MORFEU


 

O almoço nem tinha sido muito abundante, mas com a temperatura a rondar os 35 graus exteriores, o corpo ressentiu-se, a moleza tomou conta de mim, e resolvi então ir sentar-me na sala, olhando a Serra, agora a recuperar das feridas que o fogo lhe infligiu. À minha esquerda, as eólicas iam girando, girando, desenhando círculos imaginários no seu constante rodar!

E estava nesta contemplação quando pouco tempo depois comecei a ouvir uma espécie de sons esquisitos. Intrigado, apurei o ouvido, liguei o receptor do meu relógio – que é a última “revolução” da tecnologia - e eis o diálogo interplanetário que captei:

- Então que novidades há? - «-Cada vez mais alarmantes! Saturno continua a queixar-se de falta de espaço celeste. E Mercúrio faz de conta que não ouve, não cede e entrincheira-se por detrás da linha fortificada de nuvens electrónicas que parecem intransponíveis…» - «- Então isso vai acabar mal!...» - «-Talvez não. O pacto Interplanetário de Assistência Mútua abrange todos os satélites.»

- Vai pró Diabo mais os pactos. A História está cheia deles e vê lá as guerras que têm havido. Mas que diz a Rádio a esse respeito?

-A Rádio Júpiter anuncia que uma divisão mercuriana de robôs a reacção nuclear estaria posicionada ao longo da Via Láctea. No entanto a notícia não é confirmada por Rádio Úrano…» -

-E quantos robôs à reacção nuclear temos nós?...» -

 - Nenhum! Entretanto diz-se por aí que temos apenas uma dúzia de velhas máquinas de raios gama que escaparam da última guerra contra Vénus!

- E o que dizem daquele capitão dos Terráqueos que deu com tudo isto em pantanas? «-- Parece que o prenderam, mas o mal já estava feito e além disso deixaram ainda muitos dos seus compinchas à solta…»

- Então a situação é complicada! Parece que sim. Parece já ter começado o reboliço. Há passos, há portas, há costas, há brancos, há maduros, há nódoas, há morcelas, há rios, todo esse conjunto a palrar a arengar, numa cacofonia tal que ninguém se entende.

- Alô Marte! Daqui Terra. Diga se está a ouvir… «OK! Terra, Marte escuta.»

- OK! Recebido. Informe se ainda há lugar. Nave espacial pronta a descolar com emigrantes portugueses. Informe se Agência Espacial Europeia ainda não foi privatizada, escuto…

-Marte responde. SEF exige lista filiação partidária todos passageiros entrada Planete Vermelho devido indícios de vírus corruptores escondidos última sonda robótica Tuga…

- Alô! Terra chama Marte…Alô Marte!...Alô…

- Bip…bip…biiiiiiiiiip…

Lá se foi a ligação. E o sonho…

 

A VIDA EM CANÇÕES


 
Não é fácil encontrar assunto para, semanalmente, preencher o espaço que me é concedido. Ou melhor dizendo: assuntos há, e muitos!.. Só que, escrever simplesmente para ajudar a encher a página, abordando temas que, por vezes, nem dominamos, é caminho pelo qual não gosto de enveredar. E foi por isso que recorri à minha velha arca de que já vos tenho falado.

Desta vez veio-me à mão um disco antigo ainda em vinil. Riscado já. Na capa um homem de forte estatura, enormes bigodes, empunhando uma viola – Georges Brassens, um cantor compositor dos anos 50/60, muito contestado e cujas canções foram consideradas escandalosas pela burguesia francesa de então. Não sei se entre os meus leitores haverá quem se lembre de algumas delas e que escandalizaram a França: Le Gorille, Le Pornographe du Phonographe,  Les amoreux qui ecrivent sur l'eau, La Mauvaise Herbe, etc. etc. são algumas das que deram muito que falar...

«Desmistifica, desintoxica, e é o inimigo de uma sociedade inimiga do homem. Quem não gosta dele, traiu ou participa. Viva Brassens!...» – diziam uns, «Tudo o que canta é absurdo ou imundo. O seu êxito é um desafio ao bom senso e ao bom gosto...», contrapunham outros.

E todos, afinal, tinham razão, porque de todas essas diferenças, nasceu o mito Brassens. As notas que tomei na altura, – já bastante desbotadas – dizem que a sua figura de lutador e as suas canções de revolta e sarcasmo, escondem um fundo de angústia e desilusão. A sua adesão ao movimento anarquista e a sua ânsia de se cultivar através de exaustivas leituras explicam, talvez, as duas facetas do homem – um homem cada vez mais só. Família, credos políticos e religiosos, ele tudo despreza. Tudo recusa. E a violência da sua revolta é tal que a todos ataca. O mais violento vocabulário é para ele uma necessidade. É preciso chocar, testemunhar, escandalizar porque sem escândalos as pessoas conservam a sua pacatez e o agitador que as espicaça não teria razão de ser. Para conseguir dar um significado mais puro às palavras da tribo, é necessário desvendar o seu significado impuro. Brassens empenhou-se nessa tarefa e talvez sem o pensar operou uma revolução na arte, ao denunciar os falsos valores e as hipocrisias da sociedade, que se escondem sob uma canção.

Muito mais haveria a dizer, sobre esses homens da canção que pela sua irreverência, pelas suas "provocações", mas também pela sua ousadia e pelo desprezo por si próprios, enfrentaram os poderosos, fazendo com que muitas injustiças fossem atenuadas. Quedamo-nos no entanto por aqui, recordando as estrofes de uma das suas canções, cuja mensagem filosófica está ainda actualizada e merece reflexão: Les hommes sont faits, nous dit-on, / Pour vivre en band' comm' les moutons. / Moi, j' vis seul e c'est pas demain / Que je suivrais leur droit chemin.