quinta-feira, agosto 30, 2007

África

Falar acerca de África
Nunca reconheci, a quem nunca viveu em África, autoridade e conhecimentos suficientes para dela falarem. E isso, porque é muito difícil, e para muitos até impossível entrar na mentalidade dos seus habitantes, mesmo até depois de uma convivência de anos.
Muitos dos que escrevem ou que falam esquecem-se (ou não sabem) que a descolonização tentou impor à nova África “um nacionalismo sem Nação”, quando é a tribo e não a nação que constitui a célula base da vida africana. Muitas vezes o que os jornais designam por uma guerra entre países é, na realidade, uma rixa entre tribos rivais. Não digo que sempre assim aconteça, mas na maior parte, esses conflitos, têm, na sua origem, a rivalidade tribal.
Todos sabemos que as fronteiras coloniais nunca foram fronteiras naturais e que foram estabelecidas pelo simples entendimento entre as nações europeias. E foi dessa maneira que se pretendeu fazer viver em comum, povos que nem a raça, nem a língua, nem a religião, nem os interesses predispunham a que pertencessem a um mesmo Estado. Houve fronteiras, ditas “naturais” que separaram os próprios irmãos. Lembro-me dos Somalis submetidos durante anos a cinco domínios: o italiano em Mogadíscio, o britânico em Berbera, o francês em Djibouti, o etíope em Ogaden e o queniano no Oeste!
Na República Democrática do Congo, País que melhor conheci, existiam cerca de 250 etnias com 221 línguas ou dialectos falados, e todos se lembram das convulsões por que passou. As questões tribais transmitidas de geração para geração e aproveitadas em momentos de convulsões interiores por elementos e interesses externos, quase chegaram a transformar o genocídio em prática comum. As independências dos povos africanos que deveriam ser de festa e alegria foram, salvo raras excepções, isso sim, o prólogo de ciclos de morte, miséria e desespero.
Propositado ou não, os diplomatas ocidentais desconheceram por completo a psicologia da maior parte dos africanos, baseando-se apenas em alguns deles mentalizados e educados à maneira europeia ou americana. E se virmos bem, foram apenas esses que se aproveitaram da independência dos seus povos em proveito próprio. Os exemplos estão à vista...
Agora menos, mas houve um tempo em que, desde o analfabeto primário ao mais pretensioso “intelectual”, a acusação era a mesma: os brancos em África limitaram-se apenas a escravizar o negro e a amassar fortunas. Ouvi algumas vezes essa afirmação, mas nunca tentei contradizê-la. Os que assim pensam, como digo no começo, nada conhecem sobre o Continente Negro, e por isso, o mais saudável é não retorquir. O que “ sabem” é através de livros ou de facciosas histórias contadas pelos “sabichões” de serviço. Nenhum deles será capaz de explicar a diferença entre colono e colonialista. Mesmo hoje, muitos doutores e engenheiros são capazes de não saberem fazer a destrinça entre um e o outro. Mas isso fica para outra crónica.

Boa viagem

Boa viagem
Pertenço ao grupo daqueles que não conseguem ler nem dormir quando viajam. Seja qual for o meio de transporte utilizado não consigo concentrar-me na leitura, e Morfeu também não consegue tomar conta de mim.
Foi o que aconteceu aqui há tempos numa viagem que fiz entre a capital e a estação mais próxima da minha aldeia. E quando tal acontece, divago, e de olhos fechados deixo o pensamento “correr” à rédea solta… E nesse dia comparei a vida a uma viagem…
Nascemos, subimos para o comboio, e começa a marcha. Nem sempre tranquila. Há, por vezes, acidentes durante o percurso; há paragens; há surpresas; há lágrimas…
Quando subimos, encontramos pessoas, e logo pensamos que elas ficarão connosco durante todo o trajecto – são os nossos familiares!
Porém, e infelizmente a verdade é outra. Eles podem descer em qualquer estação e deixar-nos sem o seu amor, a sua afeição, a sua amizade, a sua companhia. Mas há outras que sobem e que serão também importantes para nós: são os nossos irmãos e as nossas irmãs, os nossos amigos e todas as pessoas de quem gostamos – umas estão sempre presentes, sempre prontas a ajudar; outras permanentemente indiferentes ao que se passa à sua volta.
Algumas, quando descem, deixam uma tristeza que jamais se desvanece. Outros sobem e descem tão depressa que mal os conhecemos.
Às vezes admiramo-nos e ficamos intrigados quando passageiros de quem gostamos, vão sentar-se noutra carruagem e que nos deixam viajar sozinhos!
Evidentemente que ninguém nos impede de os procurar por todo o comboio até os encontrar. Porém, muitas vezes quando os encontramos não podemos sentar-nos a seu lado porque o lugar está já ocupado...
É assim a viagem, é assim a vida: feita de desafios, de sonhos, de esperança e de despedidas... muitas vezes para sempre.
Por tudo isso façamos por fazer a viagem da melhor maneira possível. Tentemos compreender os nossos vizinhos de carruagem e procuremos o melhor que há neles. Lembremo-nos de que num qualquer momento da viagem um dos nossos companheiros pode desmaiar e pode ter necessidade da nossa ajuda e da nossa compreensão. O mesmo nos poderá acontecer…
O grande mistério da viagem é que nós nunca sabemos quando desceremos. Nem nós, nem mesmo o companheiro que viaja sentado a nosso lado!
Imagino e sinto como será triste deixar o comboio! A separação de todos os amigos que encontrámos será dolorosa. E como será mais doloroso ainda deixar os mais próximos!...
Sinto-me no entanto contente por ter contribuído para ajudar a minimizar as incertezas e os maus momentos da viagem.
Aqui fica, por isso, um apelo a todos: façam o possível para que o percurso seja agradável e tentem tudo para que os passageiros que continuam no comboio da vida fiquem com uma boa recordação de vós quando, finalmente, vos apeardes.
A todos aqueles que continuam a viajar comigo, eu desejo boa viagem!

A minha companheira

A minha companheira
O que hoje vos vou contar passou-se há muito, muito tempo. Nessa altura ouvia os mais velhos que, em tom jocoso, me falavam da sua vinda como de coisa muito grave se tratasse. Alguns, os mais íntimos, de vez em quando, e mal a ocasião se proporcionava tentavam mentalizar-me. «Lá virá o tempo – diziam-me eles – que, sem dares conta, ela aparecerá...»
- E mais depressa do que julgas! - Acrescentavam com uma pitada de humor os mais crentes em oráculos.
Estava então na minha Primavera e nesses verdes anos não há tempo para reflectir, para pensar ou para ter medo. Era um tempo em que via sempre o céu azul, em que o Sol sorria todos os dias lá no alto, só cresciam flores à minha volta e eu fazia de todos os dias um “sábado à noite”!
Não havia futuro, só o “presente” contava. Era um tempo sem interrogações. Tudo deslizava em roda livre pela bonita e plana estrada da juventude sem que fosse preciso pedalar muito...
Era a época dos sonhos, dos contos de fada, do perfume do amor – “esse fogo que arde sem se ver”, no dizer do poeta.
Mas entretanto…
Entretanto os anos foram-se acumulando, acumulando, até que um dia, cedinho, numa manhã de Inverno em que estava só, ela chegou. Senti um bafo quente no meu pescoço e estremeci! Mas ela enlaçou-me carinhosamente, apertou-me contra o seu peito, e disse-me baixinho: «Cá estou!»
Levantei os olhos e vi um rosto no espelho. Olhos inchados, provavelmente atraentes no passado, mas agora escondidos por detrás de grossas lentes aprisionadas em aros de metal luzidio; da farta cabeleira de outrora restavam apenas, nas têmporas, cabelos brancos, dispersos, qual estriga de linho pronta a ser colocada na roca; na fronte e no pescoço, rugas, muitas rugas, sulcos por onde passaram, como em leito de rio, – em grosso caudal ou em passeio tranquilo – mágoas, alegrias... E as mãos? A pele enrugada, as veias salientes e os dedos trementes não conseguiam esconder toda uma vida de lutas, de canseiras, de incertezas, de lágrimas... e também de muitas alegrias. E como aquele rosto me fascinava!
O seu sorriso trocista, a ingenuidade do seu olhar infantil como que a pedir desculpa de pecado que não se cometeu, atraíam-me…
E como de feitiço se tratasse, ali fiquei por instantes, olhando o espelho. O tempo parecia não ter pressa. E, cúmplices, ali ficámos os dois, contemplando e tentando adivinhar a história daquele rosto. Um esboço de sorriso disfarçava as rugas e a vontade de viver adivinhava-se no luzir dos olhos papudos.
E tanta, tanta alegria naquele olhar cansado mas tão feliz!
Virei-me e olhei para trás. Baixei os olhos e vi-a tentando esconder-se timidamente como que a pedir desculpa pela sua intrusão na minha existência.
E sorrimos. E talvez com medo de me perder ou de que me zangasse, Dona Velhice abraçou-me com tanta força que desde esse dia nunca mais nos separámos. E desde então e como devem já ter notado, andamos sempre de braço dado.





domingo, agosto 05, 2007

Ser Feliz

Ser feliz

Se alguém não encontra a felicidade em si mesmo, é inútil que a procure noutro lugar
La Rochefoucauld

Todos nós sabemos que ser feliz é um dos mais antigos direitos da humanidade. E também sabemos que não há ninguém que não mereça auferi-lo. Há, no entanto, quem pense nunca poder alcançar esse dom.
E isso resulta de uma certa insatisfação e de um conceito errado do que é a felicidade. O homem foi criado para ser feliz e seria insensato imaginar um Deus cujo prazer consistisse em submetê-lo a contínuas desgraças.
Essa ideia seria demasiado humana para ser divina e, quando assim pensamos, estamos a fazer um Criador à imagem da nossa imbecilidade e à semelhança da nossa estupidez. Porém, a causa, é bem diferente.
Neste mundo estereotipado em que vivemos, a felicidade deixou de ser um ideal do indivíduo para ser uma aspiração das multidões. Todos querem ser felizes da mesma maneira. Convencionou-se que não há felicidade sem automóvel, sem uma casa repleta de electrodomésticos, de electrónica, de móveis de estilo, de livros caros (mas que nunca se lêem), de imitações de objectos e de quadros antigos (dos quais não se sabe falar), sem roupas e calçado de marcas badaladas... enfim e para resumir, sem todos esses sinais exteriores de riqueza que por aí se vêem. Quanto a boas maneiras, civilidade, educação ou cultura, tudo isso é secundário. O que é preciso é ter dinheiro. E como nem todos o podem ter para se fazerem passar por aquilo que não são, daí a "infelicidade" de muitos. Uma infelicidade que gera invejas, revoltas e que, infelizmente, está a transformar a sociedade num viveiro de insatisfeitos, de egoístas e de falsários. Há na terra milhões de pessoas a sonhar a mesma coisa e a desejar os mesmos bens. E é assim que os espíritos simples se asfixiam numa atmosfera de estupidez. E são cada vez mais os que não conseguem viver fora desse esquema. Cada vez se deseja possuir mais. Cresce dia a dia a inveja pelo vizinho. A ânsia de "também querer ser" aumenta no sentido inverso do "querer fazer". Atropelam-se os princípios mais sagrados para chegar mais depressa a um lugar que se cobiça, mas que não se merece. O que mais interessa é "parecer". É uma luta feroz e constante entre aquilo que se tenta aparentar e a verdadeira realidade daquilo que se é.
Parece que fica assim, mais ou menos, traçado, ainda que com pálidas pinceladas, o retrato daquele que quer ostentar coisas superiores aos seus recursos e à sua mentalidade. E é esse, de facto, o protótipo do verdadeiro infeliz. E é tão fácil ser feliz! Contentarmo-nos com o que temos e orgulharmo-nos de sermos, apenas, como somos, é já o começo da felicidade. Mas o que muitos procuram é ser mais do que os outros. E isso é impossível, porque os outros nunca são, na realidade, tão felizes como nós julgamos.