sexta-feira, março 04, 2016

ELA AÍ ESTÁ!...


Houve um tempo, - e já lá vão tantos anos!... – em que os mais velhos me falavam dasua vinda, como se tratasse de uma coisa grave. Alguns, mais íntimos, quando a ocasião se proporcionava, tentavam mentalizar-me: «Ninguém escapa, homem, e lá virá o tempo em que, sem dares conta, ela aparecerá…» E logo a seguir, com uma pitada de humor, acrescentavam os mais crentes em oráculos: «E mais de pressa do que  julgas!...»

Nessa altura eu estava na minha Primavera e nesses verdes anos não há tempo para pensar e muito menos para nos preocuparmos com o futuro ou ter medo dele. Era um tempo em que via sempre o céu azul, em que o Sol sorria todos os dias lá no alto, só cresciam flores à minha volta e eu fazia de todos os dias um “sábado à noite”!
Não havia Futuro, só o Presente contava. Era um tempo sem interrogações. Tudo deslizava em roda livre pela bonita e plana estrada da juventude sem que fosse preciso pedalar muito. Era a época dos sonhos, dos contos de fada, do perfume do amor – “esse fogo que arde sem se ver”, no dizer do poeta. Mas entretanto…
Entretanto os anos foram-se acumulando, acumulando, até que um dia, numa manhã de Inverno, reflectida no espelho, ela sussurrou carinhosamente: «Cá estou!...»
E lá estava o seu rosto. Olhos inchados, provavelmente atraentes no passado, mas agora escondidos por detrás de grossas lentes aprisionadas em aros de metal luzidio; da farta cabeleira de outrora, restavam, apenas nas têmporas, cabelos brancos, dispersos, qual estriga de linho pronta a ser colocada na roca; na fronte e no pescoço, rugas, muitas rugas, sulcos por onde passaram, como em leito de rio, – em grosso caudal ou em passeio tranquilo – mágoas, alegrias...
E as mãos? A pele enrugada, as veias salientes e os dedos trementes não conseguiam esconder toda uma vida de lutas, de canseiras, de incertezas, de lágrimas... e também de muitas alegrias. E como aquele rosto me fascinava!
O seu sorriso trocista, a ingenuidade do seu olhar infantil como que a pedir desculpa de pecado que não se cometeu, atraíam-me… E como de feitiço se tratasse, ali fiquei por instantes, olhando o espelho. O tempo parecia não ter pressa. E, cúmplices, ali ficámos os dois, contemplando e tentando adivinhar a história daquele rosto. Um esboço de sorriso disfarçava as rugas e a vontade de viver adivinhava-se no luzir dos olhos papudos. E tanta, tanta alegria naquele olhar cansado, mas tão feliz!
Baixei os olhos e vi-a tentando esconder-se timidamente como que a pedir desculpa pela sua intrusão na minha existência. E sorrimos. E talvez com medo de me perder ou de que me zangasse, Dona Velhice abraçou-me com tanta força que desde esse dia nunca mais nos separámos. E desde então e como devem já ter notado, andamos sempre de braço dado...

DESABAFO



Todos sabemos que além da crise monetária, outras crises, mormente a de valores, se instalaram um pouco por toda a parte - em casa, na escola, no escritório, na igreja… A crise está em tudo onde a comunidade exige o esforço de cada um para construir o bem de todos.
E acreditem - não é com pessimismos e má disposição que conseguiremos ultrapassar todo esse estado de coisas!...
Às vezes ponho-me a observar o semblante das pessoas que giram à minha volta e o que vejo é uma espécie de tristeza, de desânimo, estampados nos seus rostos…Há situações em que pergunto a mim mesmo se essa apreciação não terá a ver com a diferença de idade ou com qualquer outro preconceito escondido, que me impede de me ‘aclimatar’ a este modo de vida actual!
Mas penso que não, pois apesar de a partir de certa idade não podermos recuperar “coisas” perdidas, podemos sempre e quando queremos, alargar os nossos horizontes de aprendizagem e moldarmo-nos aos hábitos e costumes que nos cercam. Nunca é tarde, nem há idades para aprender. É sempre tempo de enriquecer, quer os conhecimentos quer a maneira de viver num mundo diferente daquele de onde viemos. O velho aforismo de que «burro velho não aprende línguas» virou (como se diz no Brasil) e agora diz-se «cavalo velho, capim novo», isto é, actualização, modernidade, estar na moda… É difícil, eu sei. Mas não impossível…
O que penso é que, muitas dessas pessoas se julgam infelizes, porque nunca tiveram dificuldades, porque tudo lhes caiu do céu e jamais tiveram necessidade de reagir, de pensar e por isso, são incapazes de enfrentar os seus problemas, as suas adversidades com determinação e coragem. Desistem covardemente sem o menor respeito pela sociedade a que pertencem e a quem devem a sua existência. Voltam as costas aos escolhos que encontraram no caminho e tornam-se egoístas, invejosos, maldizentes e por vezes até difamadores. O que lhes interessa é a completa satisfação do seu ego a curto prazo. E não olham a meios…
E assim deixam de enfrentar a Vida. Deixam de lutar. Anulam-se a si próprios. Face a essa situação não admira que as decepções, os desgostos e as amarguras da Vida atinjam tais proporções que acabam, quase sempre, por fazer deles as vítimas do desespero que eles próprios criaram.
Reforçando o que acima disse, muitos julgam-se infelizes, porque desistiram de lutar, e estão sempre à espera de que os outros lutem por eles… Não fazem, mas exigem que façam. Não têm, mas exigem que lhes dêem…
Vivemos no reinado de el-rei D. Dinheiro. Todos querem ser ricos. Se é o seu caso, deixe de chupar limão. Sorria. Aliás, ‘tristezas não pagam dívidas’, que era o lema do meu tetravô, que era pobrete, mas alegrete…

 

EXCELÊNCIA


 
Sempre que sai um e entra outro, costumo escrever uma carta ao responsável que se senta na cadeira que Vossa Excelência agora ocupa. Mas como nunca recebi resposta e desconfiando dos chefes de gabinete em geral e das secretárias em particular, resolvi aproveitar este espaço que me é cedido neste Jornal para lhe enviar um agradecimento pessoal, público e intransmissível.
Aqui estou, pois, a agradecer-lhe penhoradamente o aumento que fez o favor de me conceder, elevando o valor da minha pensão que, entre nós, - e falando de contribuinte para governante – era mesmo uma vergonha! De facto, mais de meio século a trabalhar - sem nunca me ter sentado à mesa do orçamento, pagando sempre os meus impostos, e sem nunca ter “abichado” um cargo apadrinhado - a pensão que recebia, era uma autêntica injustiça!...
V. Exa., embora tarde, quis dar uma lição aos seus predecessores e zás!... Reparou o mal, e mostrou que de facto vivemos em democracia e que o povo também conta... Em verdade, se alguns conseguem um montão de notas em poucos anos, subvenções vitalícias, reformas faraónicas e coisa e tal, porque é que o Zé pagante, o Zé-trabalhador não há-de ter direito também a ser lembrado?
Por isso e como ia dizendo, Excelência, o aumento que me concedeu, - os 0,60 cêntimos de aumento por mês vão fazer-me um jeitão!
Ainda não pensei o que irei fazer com eles, mas sou capaz de aceitar a sugestão de minha mulher, a quem aumentaram também mais ou menos a mesma quantia. A sua opinião é de que, juntamente com os nossos colegas - contemplados com a mesma importância - se erga, em frente da Assembleia da República, uma estátua ao “Mentiroso”, assente num pedestal com a forma de um saco…de promessas!
Claro que isto é um desabafo, pois todos sabemos que é sempre o mexilhão que se lixa e que na terra de cegos quem tem olhos é rei, sobretudo quando se entra nos “terrenos da política”. No meu tempo de menino e moço – princípios do século XX - já se dizia que o nosso grande Camões morreu pobre, porque tinha trocado os “Lusíadas” pela política…
Mas falando agora a sério. Sua Excelência não se sente incomodado, nem um poucochinho, por ter feito tanta promessa e não ser capaz de cumprir as mais ingentes, sobretudo no campo social?
Não acha que a história dos 60 cêntimos além de ser uma injustiça é também um ultraje aos pobres e aos velhos que têm uma pensão de miséria?!...
Gostaria de continuar a conversa, mas acabou o meu espaço. Até breve.

 

 

DESAFAFOS


À guisa de comparação

Há dias quando fazia um balanço sobre as artimanhas de que os políticos se servem para ludibriar o Zé pagante, lembrei-me de uma historieta que ilustra bem esse condão, que é muito usado por alguns dos nossos “zelosos” servidores ou ex- servidores da Pátria:
«Um político com uma choruda reforma e ainda com a famigerada ‘Subvenção Vitalícia’, conduzia o seu BMW a alta velocidade quando um polícia de trânsito de serviço na cidade o mandou parar.
- O senhor ia a uma velocidade acima da permitida. A sua carta de condução, por favor.
- Não tenho, caducou…
- Então mostre-me os documentos do carro.
- O carro não é meu.
- Abra o porta-luvas, se faz favor.
- Não posso, tem um revólver que usei para roubar este carro.
O agente já bastante preocupado:
- Abra o porta- bagagens!
- Nem pensar! Lá dentro está o corpo da dona deste carro, que eu matei no assalto.
O guarda vendo-se diante de tais circunstâncias resolveu chamar o seu superior. Chegado ao local o oficial superior dirige-se ao ex-político:
- Habilitação e documento do carro por favor!
- Estão aqui senhor Capitão. Como vê o carro está em meu nome e a carta está válida.
- Abra o porta-luvas! – pede o Capitão.
E o político na reforma e com “Subvenção Vitalícia”, serenamente:
- Como vê, só tem alguns papéis.
- Abra o porta bagagens!
- Aqui está... Como vê está vazio.
O Capitão um pouco constrangido:
- Deve estar a acontecer algum equívoco: o meu subordinado disse – me que não tinha carta, que não era o dono do carro, que o tinha roubado, que tinha um revólver no porta-luvas e que tinha o corpo de uma mulher morta no porta bagagens…
E então o político reformado e com “Subvenção Vitalícia”, respondeu com toda a serenidade:
- Como vê, senhor Capitão, esse militar deve ser maluco…Só faltou dizer-lhe que eu conduzia com excesso de velocidade!...»
A comparação pode, talvez parecer um pouco desajustada, mas se atentardes bem nas artimanhas dos nossos “filhos da pátria” no intuito de endrominar o Zé Povinho, encontrareis muitas semelhanças com o procedimento usado na historieta.