segunda-feira, fevereiro 09, 2015

ENVELHECER A SORRIR



Na carruagem-restaurante, dois velhotes sentados face a face, tiram do bolso a mesma embalagem de remédio e dissolvem o pó nos respectivos copos de água. Depois, olham-se como dois cúmplices, e sorriem...
- Desculpe, mas não me diga que também sofre da coluna!...
- É verdade. E pelo que vejo, o senhor também.                   
- Exactamente. E não pode calcular o prazer que sinto...             
- Prazer? Olhe que a mim não me dá prazer nenhum.
- Perdão! Não me referia às dores, mas ao prazer de encontrar um colega...
- Pois foi o mesmo que pensei quando li o rótulo da sua embalagem!
- Artrose?                
- Acertou.
- Eu, bicos de papagaio...         
- Também tenho. Não sente de vez em quando uns estalidos?                           
- Ai que não sinto!... Se o comboio não fizesse tanto barulho até lhos fazia ouvir.        
- Eu, só p’ra médicos tem sido uma fortuna: chapas, análises e, por fim, receitaram-me estes pós.                           
- Exatamente o meu caso.                       
- Eu só senti melhoras uma vez. Estava deveras empenado e de tão desesperado fui a um armário que temos lá em casa, tirei uma caixa ao acaso... 
- E então?              
- Durante oito dias não soube o que eram dores. Depois, e ainda por acaso, voltei a ler a literatura e dei conta de que o papel estava trocado e que os supositórios eram para a gripe! Não lhe conto nada...                        
- Efeito psicossomático...                    
- Evidentemente!                        
- E quem sabe até se não seria a ginástica que fez ao pôr o supositório que lhe pôs a vértebra no lugar?                                   
- Também já pensei nisso...                                       
- Sabe, é que às vezes um gesto, uma posição diferente... E a propósito: para onde vai se não sou indiscreto?                                
- Olhe, vou fazer uma cura de lama, porque dizem que faz muito bem...              
- Tem graça. Eu também. Antigamente, quando o meu avô Marcelino ia muitas vezes ao médico e se queixava sempre da mesma coisa, o doutor mandava-o à merda! Agora, com todas estas modernices, mandam-nos fazer banhos de lama...                   
- A coisa não dá para rir, mas apetece dizer que nos tiraram da merda e nos meteram na lama...                                
- Coisas do progresso, Amigo! Antigamente era uma pobreza franciscana: sinapismos, papas de linhaça, ventosas, caldos de galinha... Até na morte éramos pobres! Hoje, morre-se rico... Veja a quantidade de Euros que um cristão engole em remédios antes de entregar a alma ao Criador!...                                  
- É verdade... Mas está na hora de tomarmos os nossos pozinhos...                                    
- Tem razão. Então à sua saúde!                  
- E à sua também!...


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