Sempre divididos entre trabalho e paixão
vamos vivendo e morrendo em cada dia que passa. Somos peças de uma engrenagem
que nos arrasta e à qual não podemos escapar. À medida que o tempo passa, que o
progresso transforma e que a ciência não pára de nos surpreender, pigmeus
impotentes que somos, resta-nos apenas esperar e acreditar na tal réstia de
sonho que há-de vir iluminar a nossa vida. A esperança é sempre a última a
morrer...
Embora calejado pelos anos, nem por isso
deixo de ser vulnerável às investidas da solidão, do desespero e da angústia.
É difícil, nos tempos que correm,
resistir a tanta inquietação e a tantas dúvidas. A multidão que nos rodeia e
cuja linguagem gira à volta de competitividade e de ganância, onde tudo é jogo
e espectáculo, obriga-me muitas vezes a escolher a solidão como porto de abrigo
e espaço de reflexão. Convivemos uns com os outros, cruzamo-nos na rua quase
sem nos saudarmos e de rostos carrancudos, olhar perdido e pensamento absorto,
lá nos vamos movimentando nesta sociedade de sorrisos de circunstância e de
aparências duvidosas. E inventamos conversas. E partilhamos as nossas
vidas...Mas lá bem no fundo vivemos sós, abjurando dessa maneira a nossa
autenticidade pessoal.
E é por isso que, por vezes, eu sinto
necessidade de me esconder, de procurar a solidão para aí construir um mundo
diferente... E é quase sempre à noite que o faço. Sobretudo, quando me confesso
a mim próprio e estabeleço o diálogo com o
outro. Aquele outro cuja
imagem, embora desfocada, me chega através dos meus netos.
E a noite, talvez porque é escura,
permite fazer viagens ao passado sem que ninguém veja; permite que as lágrimas
deslizem sem que sejam vistas; e permite ainda incursões até à parte mais
escondida e íntima do nosso ser, onde guardamos as mais ternas e saudosas
recordações!
A noite é também como que um refúgio que
serve para nos libertarmos das frustrações do dia e escaparmos, ainda que por
instantes, ao ramerrão dessas multidões despreocupadas e solitárias...
Depois de um longo percurso cimentado
com suor e lágrimas, não é fácil equilibrar os dois pratos da balança – passado
e presente – e manter o fiel no devido lugar. É que, com tanta
"conquista" e com o derrube de tanta barreira e de tantos tabus, é
difícil compreender tanta insatisfação, tanta exigência, tanto desapego ao
trabalho, tanta irresponsabilidade e tanta falta de humanismo! Há quem diga que
o passado em vez de libertar e apontar o futuro, carimba, etiqueta, ajuíza,
condena. Mas também como diz o poeta, “não há machado que corte a raiz ao
pensamento...»