quinta-feira, julho 18, 2013

UM DOS MEUS PESADELOS


Sem saber como, nem porquê, dei comigo sentado numa cadeira da última fila de uma sala de aulas cá da cidade.
O professor não tinha nada daquele mestre do meu tempo que era assim mais "pesadote" na idade, mais escrupuloso no vestir e também não lhe chamávamos “sotor”.
Este vestia calça de ganga, e oficiava em mangas de camisa. Por falta de um botão, via-se um peito cabeludo onde luzia um fio prateado, na extremidade do qual baloiçava um berloque.
Calçava sapatos de ténis que deviam ter nascido brancos mas que agora, a idade ou os maus tratos, tinham transformado num arco-íris rastejante. Talvez perante o meu olhar inquisidor o meu colega de carteira sussurrou-me que era um professor porreiraço, bué...
Constava que a sua especialidade era a agricultura, pois possuía uma licenciatura num desses novos cursos, - Ciências Agrárias, se não estou em erro - mas em face da crise nesse sector, virou-se para o ensino e lá conseguiu umas aulas...de português!...
«-Como já por várias vezes tenho afirmado - começou ele dirigindo-se à turma - quanto a mim, para que o aproveitamento na disciplina de português seja o desejado, devemos acabar com a ortografia. Acabando com ela, suprimem-se os erros ortográficos...
Raciocínio sem contestação possível, pois se cortarmos o pescoço a qualquer fulano, ele não sofrerá mais de dores de cabeça, pensei eu cá prós meus botões.
-Os pequenos - continuou - não gostam de português, porque a maior parte das palavras não se escrevem como se pronunciam, ou se pronunciam de maneira diferente daquela como se escrevem...
Raciocínio foneticamente muito discutível, mas que deixei passar.
-A ortografia - insistiu - porque só uns tantos a praticam, é um elemento de segregação social e pode até ser considerada como uma forma camuflada de racismo. Por isso, não só contribui para o empobrecimento cultural, pelo tempo que rouba e pelos sentimentos xenófobos que desperta, como também é responsável pelo enfraquecimento do espírito, tendo em conta o esforço que exige...
Raciocínio de cariz político-partidário, que fingi não perceber. 
-Porque - continuou, já vermelho e a transpirar - a ortografia é nos nossos dias uma coisa arcaica; cheira a mofo e não tem cabimento numa sociedade de tecnologias avançadas. Vivemos quase meio século no cárcere do obscurantismo. Há quase quatro décadas que dele nos libertaram!
Então por que esperamos para deitar no lixo as grilhetas que ainda nos prendem a esse passado, (que eu nem sequer conheci!...) mas que dizem ter sido sinistro e castrante, indolente e conservador?!»
E foi então que me levantei para protestar. E desmenti com toda a força tão ilustre "pedagogo", explicando que no "tal passado que ele nem sequer tinha conhecido", a maior parte daqueles que faziam a quarta classe ficava a saber escrever correctamente o português. Sem erros ortográficos!
E fui posto na rua... Que raio de pesadelo!





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