Sem
saber como, nem porquê, dei comigo sentado numa cadeira da última fila de uma sala
de aulas cá da cidade.
O professor
não tinha nada daquele mestre do meu tempo que era assim mais "pesadote"
na idade, mais escrupuloso no vestir e também não lhe chamávamos “sotor”.
Este
vestia calça de ganga, e oficiava em mangas de camisa. Por falta de um botão,
via-se um peito cabeludo onde luzia um fio prateado, na extremidade do qual
baloiçava um berloque.
Calçava
sapatos de ténis que deviam ter nascido brancos mas que agora, a idade ou os
maus tratos, tinham transformado num arco-íris rastejante. Talvez perante o meu
olhar inquisidor o meu colega de carteira sussurrou-me que era um professor porreiraço, bué...
Constava
que a sua especialidade era a agricultura, pois possuía uma licenciatura num
desses novos cursos, - Ciências Agrárias, se não estou em erro - mas em face da
crise nesse sector, virou-se para o ensino e lá conseguiu umas aulas...de
português!...
«-Como
já por várias vezes tenho afirmado - começou ele dirigindo-se à turma - quanto
a mim, para que o aproveitamento na disciplina de português seja o desejado,
devemos acabar com a ortografia. Acabando com ela, suprimem-se os erros
ortográficos...
Raciocínio sem contestação possível,
pois se cortarmos o pescoço a qualquer fulano, ele não sofrerá mais de dores de
cabeça, pensei eu cá prós meus botões.
-Os
pequenos - continuou - não gostam de português, porque a maior parte das
palavras não se escrevem como se pronunciam, ou se pronunciam de maneira
diferente daquela como se escrevem...
Raciocínio foneticamente muito
discutível, mas que deixei passar.
-A
ortografia - insistiu - porque só uns tantos a praticam, é um elemento de
segregação social e pode até ser considerada como uma forma camuflada de
racismo. Por isso, não só contribui para o empobrecimento cultural, pelo tempo
que rouba e pelos sentimentos xenófobos que desperta, como também é responsável
pelo enfraquecimento do espírito, tendo em conta o esforço que exige...
Raciocínio de cariz político-partidário,
que fingi não perceber.
-Porque
- continuou, já vermelho e a transpirar - a ortografia é nos nossos dias uma
coisa arcaica; cheira a mofo e não tem cabimento numa sociedade de tecnologias
avançadas. Vivemos quase meio século no cárcere do obscurantismo. Há quase
quatro décadas que dele nos libertaram!
Então
por que esperamos para deitar no lixo as grilhetas que ainda nos prendem a esse
passado, (que eu nem sequer conheci!...) mas que dizem ter sido sinistro e castrante,
indolente e conservador?!»
E
foi então que me levantei para protestar. E desmenti com toda a força tão
ilustre "pedagogo", explicando que no "tal passado que ele nem
sequer tinha conhecido", a maior parte daqueles que faziam a quarta classe
ficava a saber escrever correctamente o português. Sem erros ortográficos!
E
fui posto na rua... Que raio de pesadelo!
Sem comentários:
Enviar um comentário