sexta-feira, julho 26, 2013

NO COMEÇO DE MAIS UMA ETAPA


A partir de certa idade parece que o tempo passa mais depressa, que passa a correr, sem quase nos apercebermos.
Parece que os anos, à semelhança dos bólides modernos, circulam a uma velocidade tal, que nem dá tempo para apreciar a paisagem.
É como se viajássemos numa cápsula com janelas de vidros foscos donde apenas se vê o desfilar de sombras, a passagem de objectos sem contornos definidos, a sucessão de imagens fantasmagóricas – tudo isso perpassando ao som do barulho infernal das preocupações do dia-a-dia que nos contagiam e se apossam das nossas mentes.
Nesta sociedade materialista que nos comanda e escraviza, nada podemos fazer para nos libertarmos desta engrenagem maldita a que por obra e graça do progresso fomos acorrentados. Elos da mesma cadeia, parte do mesmo todo, giramos à volta do mesmo eixo e sofremos a influência dos mesmos ventos.
Toda esta corrida desenfreada da vida moderna roubou-nos a paz de espírito, a religiosidade do silêncio de outrora e o sonho de sermos interiormente livres, o sonhos da criança que fomos!
E assim vai passando o tempo. Veloz, indiferente à nossa insatisfação, aos nossos desenganos, às nossas frustrações e aos nossos queixumes. É assim o jogo quotidiano da própria vida, feito de competições e indiferenças!
Mas mesmo assim todos os dias fazemos planos, todos os dias gizamos projectos, todos os dias acalentamos esperanças, mesmo correndo o risco de ver o sonho transformado em pesadelo!... Mas é a voz da esperança a incutir "alma" no vazio da crescente desumanização; é um convite para reforçar, – neste tempo sem tempo em que vivemos – o hino à vida, fazendo ressuscitar o sonho perdido por intermédio de uma poesia humanista e solidária...
Falo de poesia, mas não sou poeta. O poeta é aquele que sente de outra forma. O poeta não se faz, o poeta nasce. O verdadeiro poeta aprofunda sentimentos e vivências e faz descobrir nas pequenas coisas grandes coisas, mostrando-nos que, afinal, o que somos e o que fazemos tem uma razão de ser mais profunda do que aquilo que pensamos. Há quem diga que a poesia é o homem. E como o homem tem sempre uma paixão a construir, um sonho a desabrochar, um combate a travar ou uma felicidade a atingir, a poesia tudo isso contém: amor, emoção, luta, esperança – uma amálgama de religiosidade e de mistério que são, afinal, os ingredientes de que é feita a vida. O tempo voa. Foge... Mas não será o tempo um aliado que Deus nos deu? Não é ele que dá consistência e valor às coisas? Quanto mais tempo passa, menos doem os desgostos... Façamos então dele um poema. Aliás, como disse o poeta, «uma hora não é uma hora. É um vaso cheio de perfumes, de sons, de projectos, de alegrias e de esperanças...»


MANTER A ROTA


O tempo, apesar de ser um grande escultor, nunca volta atrás para fazer retoques ou modificar seja o que for na obra que esculpiu. No entanto, confesso que embora o "passado" seja para mim um ponto de referência, também não gostaria de voltar a vivê-lo.   
No interior daqueles que chegaram a homens sem nunca terem sido meninos, há marcas do passado que jamais se diluirão e que acabam, mais tarde, por servir de lenitivo, de compensação e até de refúgio, sejam quais forem os sobressaltos e os desencontros das nossas vidas. Por mais que queiramos não conseguimos nunca apagar esses traços, essas pegadas que marcaram o começo da nossa existência. Há sempre um episódio que perdura eternamente - uma vontade insatisfeita, uma aspiração que realizámos, um castigo injusto, uma paixão infantil, um sonho que se desfez e muitas esperanças também!
E é quando a caminhada já vai longa, quando a intensidade das paixões diminuiu, quando as horas deixaram de nos escravizar e as modernas encruzilhadas da vida nos confundem, é então que procuramos o tal refúgio. E nele reflectimos, meditamos, analisamos e, quase sem querer, voltamos atrás e recordamos...
E é nesses momentos mágicos, quando o silêncio impera e refreia o pensamento, que a imaginação, à rédea solta, viaja no tempo, segue as pegadas e perde-se no sótão poeirento das nossas memórias...
Mas nem sempre o reencontro com o passado é pacífico. A vida não volta à infância e muitas vezes as lutas que interiormente travamos por querermos adaptar as aivecas do antigo arado à moderna charrua do tractor, só nos trazem desgostos e frustrações. São lutas inglórias...
É que a diferença entre os marcos de pedra do passado e as balizas electrónicas do presente é abismal. Incomensurável!...
Protagonista dessas pelejas, muitas vezes, mesmo antes de começar, deponho as armas, tão diferentes se me afiguram os métodos do combate e as armas do "inimigo"!
Ademais, não se pode parar o tempo. Temos de viver uns com os outros e é difícil escapar às atmosferas sociais do tempo que passa. Sem renunciar ao passado, tento ser homem do presente. Mas sempre com a aldeia de antigamente a pular-me no coração. Aquela aldeia de olhos postos em Deus, em que se fechava um negócio com um aperto de mão e uma palavra de honra. Foi nesse mundo que me fiz homem, que aprendi a partilhar, que aprendi a cumprir a doutrina da solidariedade, do respeito mútuo, da lei da honra. Ali interiorizei para sempre o valor da amizade e a cultura dos princípios da moral sem necessidade de folhear volumosos livros nem estudar complicados tratados de filosofia política ou outra. E agora, que a embarcação começa a desmantelar-se, agarro-me aos pedaços que resistiram às tempestades e vestindo o colete da Fé, tento manter a rota neste mar alteroso e traiçoeiro em que vivemos.





AS BIRRAS DAS "NOSSAS CRIANÇAS GRANDES"


Tempos longínquos, esses!... Era no tempo em que – sobretudo nos meios rurais – se chegava a pai sem nunca ter sido menino.
Qual trabalho infantil, qual carapuça! Era preciso ajudar os pais e cedo se começava a comer o pão amassado pelo diabo... Cedo se adquiria o sentido da responsabilidade e, com ela, logo se iniciava, por aprendizagem prática e contacto directo, o conhecimento do mundo real.
Não pretendo fazer a apologia desses tempos difíceis até porque, também eu, muitas vezes palmilhei os seus agrestes e íngremes caminhos.
Reconheço, no entanto, que então, e malgré tout se atingia a maturidade mais cedo. Aliás, é a própria ciência da evolução das espécies que no-lo ensina: quanto mais evoluída é a espécie, mais longa se torna a fase da desmama...
E, de facto, hoje, o que as estatísticas e os estudos sociológicos nos mostram é que a idade em que os cidadãos atingem a maturidade e a independência económica e social é cada vez mais elevada.
Exemplos? Há por aí a rodos. O País está a abarrotar de crianças grandes!
Quase todas elas inexperientes, mimadas, irrequietas, mal-educadas, bazófias e, mais grave ainda, completamente desconhecedoras do mundo real que as rodeia.
Recebo de vez em quando uns “piropos” acusando-me de falar muito no passado e de ter saudades desse tempo, que muitos - mesmo sem conhecimento de causa – lhe atribuem "feitos" tenebrosos! Que lhes faça bom proveito, mas quem não gosta de recordar a sua mocidade?
Quem, como eu, que cedo comecei a comer o pão que o diabo amassou, pode ficar indiferente ao comportamento inqualificável dessas crianças grandes, às quais nunca nada faltou e que de repente tudo tiram aos que pouco têm? Como podemos nós, os mais idosos, que trabalhámos uma vida inteira, assistir sem revolta a tudo isto? A corrupção, a falta de palavra, a irresponsabilidade, o desprezo pelo bem comum, fizeram com que se criasse uma classe de parasitas, que urge exterminar quanto antes.
Os tristes episódios políticos a que estamos a assistir são bem o espelho dessa “enxerga podre cheia de percevejos” que é a política, como lhe chamou Guerra Junqueiro. Esses bichos fedorentos, esses parasitas, esses homens sem escrúpulos que não hesitam em criar situações trágicas para o povo e que desacreditam uma Nação aos olhos do Mundo; que brincam com a vida de pessoas e põem, sobretudo os mais carenciados numa situação deveras trágica, esses homens, dizia, deveriam ser julgados, não pela História, que é castigo indolor, mas por tribunais competentes, céleres e isentos. Que não os nossos…








quarta-feira, julho 24, 2013

VIVER O PRESENTE

Esse grande escultor que é o tempo nunca volta atrás para fazer retoques ou modificar seja o que for na obra que esculpiu. No entanto, confesso que embora o "passado" seja para mim um ponto de referência, também não gostaria de voltar a vivê-lo.
No interior daqueles que chegaram a homens sem nunca terem sido meninos, há marcas do passado que jamais se diluirão e que acabam, mais tarde, por servir de lenitivo, de compensação e até de refúgio, sejam quais forem os sobressaltos e os desencontros das nossas vidas. Por mais que queiramos não conseguimos nunca apagar esses traços, essas pegadas que marcaram o começo da nossa existência.
Há sempre um episódio que perdura eternamente - uma vontade insatisfeita, uma aspiração que realizámos, um castigo injusto, uma paixão infantil, um sonho que se desfez e muitas esperanças também!
E é quando a caminhada já vai longa, quando a intensidade das paixões diminuiu, quando as horas deixaram de nos escravizar e as modernas encruzilhadas da vida nos confundem, é então que procuramos o tal refúgio. E nele reflectimos, meditamos, analisamos e, quase sem querer, voltamos atrás e recordamos...
E é nesses momentos mágicos, quando o silêncio impera e refreia o pensamento, que a imaginação, à rédea solta, viaja no tempo, segue as pegadas e perde-se no sótão poeirento das nossas memórias.
Mas nem sempre o reencontro com o passado é pacífico. A vida não volta à infância e muitas vezes as lutas que interiormente travamos por querermos adaptar a aiveca do arado à moderna charrua do tractor, só nos traz desgostos e frustrações. É uma luta inglória - a diferença entre os marcos de pedra do passado e as balizas electrónicas do presente é abismal. Incomensurável!...
Protagonista dessas pelejas, muitas vezes, mesmo antes de começar, deponho as armas, tão diferentes se me afiguram os métodos do combate perante as armas do "inimigo"!
Ademais, não se pode parar o tempo. Temos de viver uns com os outros e é difícil escapar às atmosferas sociais do tempo que passa. Sem renunciar ao passado, tento ser homem do presente. Mas sempre com a aldeia de antigamente a pular-me no coração. Aquela aldeia de olhos postos em Deus, em que se fechava um negócio com um aperto de mão e uma palavra de honra. Foi nesse mundo que me fiz homem, que aprendi a partilhar, que aprendi a cumprir a doutrina da solidariedade, do respeito mútuo, da lei da honra.
Diz-se que a maior parte dos velhos vive de recordações. É natural que assim seja, pois quando já não se pode conservar a alegria da infância e a embarcação começa a desmantelar-se de tanta tempestade ter enfrentado, há que construir outra - uma espécie de jangada feita com os pedaços mais resistentes que escaparam…E com ela tentar esquecer o passado, não pensar no futuro e viver o presente.











quinta-feira, julho 18, 2013

UM DOS MEUS PESADELOS


Sem saber como, nem porquê, dei comigo sentado numa cadeira da última fila de uma sala de aulas cá da cidade.
O professor não tinha nada daquele mestre do meu tempo que era assim mais "pesadote" na idade, mais escrupuloso no vestir e também não lhe chamávamos “sotor”.
Este vestia calça de ganga, e oficiava em mangas de camisa. Por falta de um botão, via-se um peito cabeludo onde luzia um fio prateado, na extremidade do qual baloiçava um berloque.
Calçava sapatos de ténis que deviam ter nascido brancos mas que agora, a idade ou os maus tratos, tinham transformado num arco-íris rastejante. Talvez perante o meu olhar inquisidor o meu colega de carteira sussurrou-me que era um professor porreiraço, bué...
Constava que a sua especialidade era a agricultura, pois possuía uma licenciatura num desses novos cursos, - Ciências Agrárias, se não estou em erro - mas em face da crise nesse sector, virou-se para o ensino e lá conseguiu umas aulas...de português!...
«-Como já por várias vezes tenho afirmado - começou ele dirigindo-se à turma - quanto a mim, para que o aproveitamento na disciplina de português seja o desejado, devemos acabar com a ortografia. Acabando com ela, suprimem-se os erros ortográficos...
Raciocínio sem contestação possível, pois se cortarmos o pescoço a qualquer fulano, ele não sofrerá mais de dores de cabeça, pensei eu cá prós meus botões.
-Os pequenos - continuou - não gostam de português, porque a maior parte das palavras não se escrevem como se pronunciam, ou se pronunciam de maneira diferente daquela como se escrevem...
Raciocínio foneticamente muito discutível, mas que deixei passar.
-A ortografia - insistiu - porque só uns tantos a praticam, é um elemento de segregação social e pode até ser considerada como uma forma camuflada de racismo. Por isso, não só contribui para o empobrecimento cultural, pelo tempo que rouba e pelos sentimentos xenófobos que desperta, como também é responsável pelo enfraquecimento do espírito, tendo em conta o esforço que exige...
Raciocínio de cariz político-partidário, que fingi não perceber. 
-Porque - continuou, já vermelho e a transpirar - a ortografia é nos nossos dias uma coisa arcaica; cheira a mofo e não tem cabimento numa sociedade de tecnologias avançadas. Vivemos quase meio século no cárcere do obscurantismo. Há quase quatro décadas que dele nos libertaram!
Então por que esperamos para deitar no lixo as grilhetas que ainda nos prendem a esse passado, (que eu nem sequer conheci!...) mas que dizem ter sido sinistro e castrante, indolente e conservador?!»
E foi então que me levantei para protestar. E desmenti com toda a força tão ilustre "pedagogo", explicando que no "tal passado que ele nem sequer tinha conhecido", a maior parte daqueles que faziam a quarta classe ficava a saber escrever correctamente o português. Sem erros ortográficos!
E fui posto na rua... Que raio de pesadelo!





MORRA MARTA...MORRA FARTA!


«- … A bem dizer, Doutor, eu estou bem, mas como se diz por aí que não sabemos alimentar-nos, vim pedir o parecer de um médico. Por exemplo, fala-se muito no sal…
- O sal? O sal é a pior droga existente sobre a Terra. Os gordos, os cardíacos…
- Mas, Doutor, uma omeleta sem sal…
- Omeleta? Nem fale em ovos, homem! Olhe o fígado e não esqueça o desequilíbrio que podem causar no aparelho digestivo!
- Mas, Doutor, eu só tenho digestões difíceis quando como carne de porco…
- Carne de porco?... Sabe que os nitritos são tantos nessa carniça que podem levar um cristão directamente à cova sem passar pela Igreja?
- Nesse caso, Doutor, um bife com batatas fritas…
- Nem pense! Não sabe que os bovinos de hoje são alimentados quimicamente e engordados à força de hormonas? Não lhe diz nada esse palavrão? Já pensou no veneno que contém um bife? E quanto a batatas, atenção! Nada de abusos. Os pesticidas contra as doríforas, os produtos químicos para as conservarem…
- Eu bem digo lá em casa, Doutor, que o frango é ainda…
- Alto aí, caro amigo. Atenção. Esse galináceo tem ainda mais química do que o animal. É como uma esponja e absorve todos os venenos possíveis e imaginários contidos nas farinhas que lhe põem nas tremonhas.
- Então, Doutor, pelos vistos, só o peixe…
- Qual o quê? Então não tem ouvido falar na poluição dos mares, nos petroleiros lavados em pleno Oceano, nos detritos e nos esgotos que envenenam as águas? O peixe actualmente contém quantidades de mercúrio alarmantes! Comer peixe equivale a suicidar-se trincando termómetros daqueles antigos, homem!
- Ouça, Doutor, depois de o ouvir falar de tanta desgraça, sabe o que vou fazer? Comer apenas pão com manteiga…
- Experimente e verá… Com a farinha actual que é apenas um pó indigesto e a manteiga que é colesterol no seu estado mais puro, você mal se precata tem as artérias entupidas, dá dois saltos e é um homem morto!...
- Nesse caso, Doutor, penso que só nos resta o ar…
- E mesmo assim, só o ar do campo, porque o da cidade com os gazes dos escapes dos automóveis e os fumos tóxicos das fábricas…
- Pró raio que o parta, seu esculápio de uma figa!
Eu cá vou ingerir nitritos, hormonas, mercúrio e todos esses venenos que diz existirem em tudo o que sabe bem. Vou consolar-me, ouviu bem? Vou consolar-me. Vou comer de tudo o que me apetecer, sem olhar aos venenos que o Doutor enumerou. Passe bem…»


P.S. Anos depois, a secção de necrologia do jornal da Vila onde morava o consulente, anunciava a sua morte. Acrescentava a notícia que o motorista que causara o atropelamento se tinha posto em fuga…  

ÁFRICA MÁRTIR


Não reconheço, a quem nunca viveu em África, autoridade e conhecimentos suficientes para dela falarem. E isto, porque é muito difícil, e para muitos até impossível, entrar na mentalidade dos seus habitantes, mesmo até depois de uma convivência de anos.
Muitos dos que escrevem, esquecem-se, (ou não sabem) que a descolonização tentou impor à nova África, "um nacionalismo sem Nação", quando é a tribo, e não a nação, que constitui a célula base da vida africana.
A título de exemplo, aquando do conflito, há alguns anos, entre o Ruanda e o Zaire, e muito embora nós chamemos os opositores de ruandeses e zairenses, o certo é que na intimidade das suas aldeias eles sentem orgulho de pertencerem, antes de tudo, às suas respectivas e inúmeras tribos de origem. E assim, o que designamos por uma guerra entre paises, é , na realidade, uma guerra entre tribos rivais. O que é muito mais trágico e, por que não dizê-lo, de solução quase impossível.
Todos nós sabemos que as fronteiras coloniais nunca foram fronteiras naturais, tendo sido estabelecidas pelo simples entendimento entre as nações europeias adoptando os critérios da divisão do bolo, portanto, com limites falsos. E foi assim que se pretendeu fazer viver em comum povos que nem a raça, nem a língua, nem a religião, nem os interesses, predispunham a pertencer ao mesmo Estado. Houve mesmo fronteiras ditas naturais que separaram os próprios irmãos, como os Somalis, submetidos durante anos a cinco domínios: o italiano a Mogadíscio, o britânico em Berbera, o francês em Djibouti, o etíope em Ogaden, e a queniana no Oeste. O Zaire não escapa também a esse fenómeno, e as várias convulsões por que tem passado são, -com a ajuda de interesses externos, complementados pela ambição desmedida dos novos mandantes, fruto da passagem rápida e sem transição da era da zorra à do avião - motivadas, em grande parte, por questões tribais transmitidas de geração para geração. O genocídio está em vias de ser considerado uma prática comum...
Não resisto a citar o poeta ugandês Okot Bitek: "O rio de sangue que a África verteu depois das independências, é mais largo e mais longo que o poderoso Nilo. Os refugiados africanos são tão numerosos como as nuvens de gafanhotos. As nossas prisões estão a abarrotar de presos políticos..."
Tudo isto para concluir que vem longe o dia em que todos os habitantes e em especial as crianças, possam usufruir do bem-estar, da tranquilidade e da paz que alguns homens, desconhecedores da realidade do Continente Africano, prometeram a seus pais, há mais de cinco décadas.
Lembrei-me deste  texto que escrevi em 1997 e que foi  traduzido para neerlandês e publicado em 1997 no semanário belga “Delta” ao ler há dias o apelo de D. François Xavier Maroy Rusengo, arcebispo de Bukavu, que de visita a Portugal, pediu que rezassem pela paz na Republica Democrática do Congo. Um País que 53 anos depois da independência continua a ser palco de guerras, de mortes, de violações e de lágrimas. Um exemplo de como a impunidade transforma um País rico num rio de sangue.



PRIMAVERA



Maio pardo. Manhã de Domingo. Um Domingo de aldeia, silencioso, sem trânsito e dominado apenas pelos ruídos próprios da ruralidade – o balido de uma ovelha, o cacarejar das galinhas do vizinho e ao longe o uivar plangente de um cão.
Uma brisa fresca vinda da Serra da Estrela deu os bons-dias e continuou. Pelo rumo que levava dirigia-se à sua colega do Caramulo que ainda mal acordada parecia espreguiçar-se afastando a ténue cortina da névoa matinal.
O Sol despontou há pouco e de bocarra aberta estende os braços, inundando de luz a Natureza e fazendo brilhar as gotas de água retidas na verde folhagem das árvores. A avaliar pelas poças de água aqui e além no caminho, choveu de noite.
Cheira a Primavera – esse cheiro característico e indefinido em que tudo se reúne e onde o odor vindo da terra prenhe de novidade a despontar, se mistura com os variados cheiros dos inúmeros perfumes das indumentárias com que as árvores se começam a vestir.
O lençol de nuvens que cobria a Serra desapareceu, e ela resplandece agora oferecendo-nos uma espécie de manta de farrapos de várias cores – uma espécie de arco-íris de flores campestres em que a urze predomina e sobressai…  
Como que hipnotizado por tão natural e rara beleza, quase não me apercebi da sua chegada: eram muitos e vinham em grupos. Todos diferentes tanto no vestir, como na maneira de se exprimirem ou na forma de se deslocarem, mas no fundo todos iguais e parecidos na maneira de comunicar.
Não compreendia a sua linguagem, mas dava para entender que todos estavam de acordo quanto ao local escolhido para a reunião.
De que se trataria? De um aniversário, de uma festa ou simplesmente da comemoração de uma data importante? Havia também aqueles cujos procedimentos se assemelhavam a uma confraternização ou a uma reunião de amigos ou conhecidos.
E assim permaneceram por algum tempo num encontro barulhento, interrompido de vez em quando por uma debandada geral, mas logo seguida de um retorno maciço.
Entretanto devem ter chegado a acordo, pois assim como vieram, em grupos, assim partiram, pressupondo eu que tenha sido para pôr em execução o que haviam combinado.
O Sol agora aquece mais e a passarada, em bandos, com as andorinhas a comandar a “esquadrilha”, lá se dispersou em várias direcções….
Maio pardo. Manhã de Domingo e eu a pedir a Deus que me conceda mais um ano para assistir a outro encontro da passarada, a mais um dos Seus milagres, a mais um renascimento – o da Primavera em que a Natureza se veste toda de verde fazendo sobressair os variados tons das flores que desabrocham de viçosos caules.
Manhã de Domingo. Primavera - a Natureza com fatiotas garridas. Que belo e deslumbrante espectáculo. E que bênção  ao contemplá-lo do alto deste meu montão de Invernos!