sábado, maio 09, 2015

ESCREVINHADOR DE CABELOS BRANCOS

 
Escrevinhador de  cabelos brancos
Ecrire, c’est une façon de parler sans être interrompu
Jules Renard
Há dias em que quase somos submersos pelas vagas da nossa própria frustração. Sofremos ao remexer os arquivos da memória, e sofremos também quando imaginamos que o mundo e a vida poderiam ser de outra maneira. E é nesses momentos que eu sinto necessidade espiritual de me confessar, de confidenciar ao papel todas as minhas mágoas, as minhas angústias e a minha revolta por tantos silêncios e tantos sonhos que não consegui concretizar. É a maneira de afastar para longe tudo o que a vida me negou, e é, também, simultaneamente, um hino em louvor do que ela me concedeu em troca. É assim como que uma mistura de lágrimas e sorrisos. De lágrimas que foram secando com o passar dos anos e de sorrisos que nunca me abandonaram porque se apoiaram sempre nessa grande força interior, que é a Fé consubstanciada na satisfação de ter conseguido ultrapassar e vencer só, e sem desânimo, os obstáculos que a vida foi colocando no meu caminho. É uma espécie de diálogo sem vozes, em que a mesma personagem representa dois interlocutores, distantes no tempo, mas que durante anos, caminharam sempre lado a lado, acalentando os mesmos projectos, as mesmas ambições, os mesmos sofrimentos e também cultivando sempre as mesmas esperanças.
Neste turbilhão de ambiguidades e egoísmos, as pessoas estão de tal maneira acorrentadas com as grilhetas de que a sociedade actual se serve para as escravizar, que é cada vez mais difícil encontrar alguém com quem se possa manter uma conversa cujo assunto não seja relacionado com toda esta podridão e falta de dignidade que nos rodeia. A moral do passado, odiosa, reaccionária, paternalista e castradora, foi enterrada. Porém, a outra moral, a nova, a boa, a ideal, a verdadeira, onde está?!... Talvez a resposta se encontre nos milhões ganhos à custa alheia e depositados em muita conta bancária. Não estou a dar lições. Quem sou eu para o fazer!
Estou apenas a falar baixinho. Só para mim. E porque em todos os dias morremos um pouco, escrevendo, eu vou aproveitando todos esses momentos, transformando cada um deles, num hino de louvor à vida. Quando escrevo, vou sorvendo gulosamente todos os minutos desta passagem – desta vida que nos desgasta com os seus encantos e desencantos. Quando escrevo, encontro-me com o paradoxo que sou e com o outro eu da minha alma.
Escrevinhador de barba e cabelos brancos escrevo também para resistir à marginalização e não deixar morrer a criança da alma, a alegria de viver, a espontaneidade do sorriso e a fé que sempre me alumiaram. Escrever é, em resumo, uma espécie de reflexão interior – uma renovação da chama da esperança e um regresso à inocência e à alegria da criança que tento conservar sempre viva dentro de mim.
 

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