Escrevinhador de
cabelos brancos
Ecrire,
c’est une façon de parler sans être interrompu
Jules Renard
Há
dias em que quase somos submersos pelas vagas da nossa própria frustração.
Sofremos ao remexer os arquivos da memória, e sofremos também quando imaginamos
que o mundo e a vida poderiam ser de outra maneira. E é nesses momentos que eu
sinto necessidade espiritual de me confessar, de confidenciar ao papel todas as
minhas mágoas, as minhas angústias e a minha revolta por tantos silêncios e
tantos sonhos que não consegui concretizar. É a maneira de afastar para longe
tudo o que a vida me negou, e é, também, simultaneamente, um hino em louvor do
que ela me concedeu em troca. É assim como que uma mistura de lágrimas e
sorrisos. De lágrimas que foram secando com o passar dos anos e de sorrisos que
nunca me abandonaram porque se apoiaram sempre nessa grande força interior, que
é a Fé consubstanciada na satisfação de ter conseguido ultrapassar e vencer só,
e sem desânimo, os obstáculos que a vida foi colocando no meu caminho. É uma
espécie de diálogo sem vozes, em que a mesma personagem representa dois
interlocutores, distantes no tempo, mas que durante anos, caminharam sempre
lado a lado, acalentando os mesmos projectos, as mesmas ambições, os mesmos
sofrimentos e também cultivando sempre as mesmas esperanças.
Neste
turbilhão de ambiguidades e egoísmos, as pessoas estão de tal maneira
acorrentadas com as grilhetas de que a sociedade actual se serve para as
escravizar, que é cada vez mais difícil encontrar alguém com quem se possa
manter uma conversa cujo assunto não seja relacionado com toda esta podridão e
falta de dignidade que nos rodeia. A moral do passado, odiosa, reaccionária,
paternalista e castradora, foi enterrada. Porém, a outra moral, a nova, a boa, a ideal, a verdadeira, onde está?!... Talvez a resposta se encontre nos
milhões ganhos à custa alheia e depositados em muita conta bancária. Não estou
a dar lições. Quem sou eu para o fazer!
Estou
apenas a falar baixinho. Só para mim. E porque em todos os dias morremos um
pouco, escrevendo, eu vou aproveitando todos esses momentos, transformando cada
um deles, num hino de louvor à vida. Quando escrevo, vou sorvendo gulosamente
todos os minutos desta passagem – desta vida que nos desgasta com os seus
encantos e desencantos. Quando escrevo, encontro-me com o paradoxo que sou e
com o outro eu da minha alma.
Escrevinhador
de barba e cabelos brancos escrevo também para resistir à marginalização e não
deixar morrer a criança da alma, a alegria de viver, a espontaneidade do
sorriso e a fé que sempre me alumiaram. Escrever é, em resumo, uma espécie de
reflexão interior – uma renovação da chama da esperança e um regresso à
inocência e à alegria da criança que tento conservar sempre viva dentro de mim.
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