Penso
que não há ninguém que, de vez em quando, consiga resistir ao desejo de
revisitar o passado e recordar factos e figuras que dele fizeram parte.
Fiz
há dias uma dessas viagens imaginárias e fui parar à minha aldeia. Numa das
ruas mais antiga e por detrás de um espigueiro em ruinas, quem me salta à
imaginação? O Bernardino…
O
Bernardino era mais ou menos da minha idade. Só que mais forte. Corpulento,
sempre risonho, era – usando a linguagem de hoje – um gajo porreiro.
Porém,
naquela altura, a sua profissão já não era nada bem vista e o
mais simples trabalho que fizesse
trazia-lhe complicações. E ele, como todos nós, tinha de trabalhar para comer.
E trabalhava dia e noite. Mas mais de noite…
Nos
intervalos, nos momentos livres, dormia em qualquer sítio: no vão de uma
escada, numa casa abandonada ou num palheiro. Todos esses lugares lhe serviam.
Não gostava do barulho. Adorava o silêncio e era um acérrimo defensor do
escuro.
Para
executar as suas tarefas,
usava as mais rudimentares ferramentas e arrostava os maiores perigos. Além
disso não tinha sindicato que o defendesse, não tinha direito a férias, e nessa
altura também ainda não existiam os subsídios dos malandros, nomeadamente o
Rendimento Social de Inserção.
Por
vezes eram todos contra ele: a população, os polícias… e até a Justiça, que já naquela altura nada tinha de imparcial.
Defendia ferozmente os “clientes” visitados e condenava sempre o visitante – o
Bernardino. E foi a pensar nele, com um pé no começo do século vinte, (altura
em que ele exerceu a sua actividade) e outro neste, em que estamos, tentei
imaginar como seria o Bernardino de hoje, o Bernardino versão moderna, século
vinte e um!
E
então, imaginei-o sentado ao volante de um “topo de gama”, bem vestido, rolando
pela auto-estrada, telemóvel colado ao ouvido e sorriso nos lábios…
Um
Bernardino à la page – sem gazua, sem
pé-de-cabra, sem escada de corda e servindo-se apenas da ferramenta que usam
agora os da sua profissão – uma simples esferográfica!
Como
as coisas mudaram, como os métodos evoluíram e quão bonito é o progresso. Que aconteceria
ao Bernardino se hoje fosse possível ressuscitá-lo? Quem sabe se não seria
condecorado pela sua “honestidade”?
Ah!...Esquecia-me de vos dizer que num dia em
que o “trabalhinho” não correu bem, o Bernardino foi preso e condenado a muitos
anos de prisão, que teve de cumprir integralmente numa enxovia húmida e sem
luz. Como eram pobres e mal compreendidos os ladrões do meu tempo!...