A chegada do barco
A primeira coisa a retirar era o saco do correio. As notícias da terra distante: as cartas (quando vinham...) e os jornais e revistas que embora com atraso (às vezes de um mês!) vinham matar saudades e dizer-nos o que se passava pelo mundo. Era depois a vez de ir espreitar os géneros alimentícios que nos tinham mandado da Sede em Basankusu. Tudo enlatado: bacalhau em embalagens zincadas; farinha em tambores herméticos; latas de leite em pó; latas de várias conservas, sobretudo sardinhas portuguesas; batatas do Kivu numa espécie de cestos que faziam lembrar as folhas da piteira; garrafões de vinho português (nessa altura com a marca "Ródão") e também garrafas de cerveja, de origem belga ou holandesa e que vinham acondicionadas em caixas de madeira que continham 48 garrafas de 75 cl. Era a cerveja que nos refrescava "acudia" ao calor dos trópicos. Bebia-se muita e, muitas vezes, porque matava mais a sede, acompanhava a refeição. O uísque era uma bebida pouco usada no interior e, geralmente, só se bebia à noite após a última refeição.
Procedia-se depois à descarga da restante mercadoria e outros produtos empregados nas várias fabricações: tambores de 200 quilos de soda cáustica, garrafões de 50 litros de ácido fórmico, sacos de cimento, chapas de zinco, etc., etc.
O barco continuava depois a subida até ao seu último porto. Três dias depois voltava novamente para carregar os produtos destinados a consumo do país ou à exportação.
Muitas vezes, sobretudo quando as águas começavam a baixar a estadia do barco era abreviada e o carregamento tinha de ser feito de noite.
Com a caldeira sempre à pressão para fazer mover o gerador cujo holofote, de que já falei, iluminava a margem onde se desenrolavam os trabalhos com vista ao carregamento das barcaças, era grande a azáfama e, muitas vezes chegávamos a casa e só tinha tempo de tomar um duche antes de fazer a chamada do pessoal da extracção da borracha, que tinha lugar entre as 4 e 4 e meia da manhã. Houve um tempo em que o encarregado do sector comercial a residir temporariamente no N'gongo, o Ângelo Grilo, me acompanhou nessas andanças e era quando acabávamos o carregamento ou descarregamento que levámos uma garrafa de uísque quase até ao fim!...
Por tudo isso, o barco desempenhava papel importante na existência de todos aqueles que viviam no interior do Congo, um pouco isolados do Mundo. Entre 1950 e 1960, os comandantes dos barcos, todos eles de nacionalidade congolesa e formados por belgas, eram muito competentes e desempenhavam a sua missão com muito saber e honestidade.
Muitas vezes pedi a esses homens que me comprassem e trouxessem da capital livros ou outras coisas de que necessitava e eles sempre o fizeram sem reservas e com desinteresse, exprimindo sempre o seu contentamento por nos serem úteis!
Esqueci os seus nomes mas, pelo menos com dois deles, muitas vezes conversei acerca do futuro do país. Juntos, partilhávamos as mesmas dúvidas quanto à independência...
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