Isolado bem no
alto da serra, lá ia sobrevivendo sem quaisquer ajudas do Estado. Mas também não
havia dinheiro que pudesse pagar a tranquilidade e a paz de espírito de que
desfrutavam naquele ermo. No seu mundo rural tudo tinha mudado e quase tudo era
proibido. A tal “ASAE” & Associados tinham dado o golpe final...
Desconfiado de
todas as modernices, entretinha-se a cultivar a terra ingrata, mas que lhe dava
o sustento para a mulher e dois filhos e ainda para a criação de galinhas,
porcos, patos, um chibo e duas cabras que lhe davam o leite para os miúdos. Na
semana passada a sogra viera viver com eles e era mais uma boca a sustentar. Vida
ingrata! De cada vez que ouvia notícias acerca dos ordenados e da vida despreocupada
de certos “senhores” e afins, tinha ganas de lhes apertar os gasganetes!..
A última
novidade trazida por um sobrinho informando-os de que nem animais da própria
criação se podiam abater sem ser num matadouro, foi a gota de água: «Vão pró
raio que os parta!...» E cada vez se agigantava mais a ideia que o perseguia há
algum tempo. Estava decidido. Ia fazê-lo. A mulher sempre temente às leis e a
Deus, tentava dissuadi-lo: «-Ó Francisco, tu já pensaste no que vais fazer?» «-É
evidente que sim, mas diz lá como vamos fazer para dar de comer a todos?» - «-
Não sei, mas matar assim…E se descobrirem?...»
- Se
descobrirem que se lixem! Está tudo preparado e já não se pode recuar. O
compadre Barnabé vai ajudar-me e vais ver que tudo há-de correr bem. Lembra-te
que é para bem dos nossos filhos e até da tua mãe. Ninguém vai descobrir.
Bateram à
porta. A mulher espreitou pela janela. Era a carrinha do compadre Barnabé. O
Francisco deu um pulo na cadeira, pegou na enorme faca que tinha afiado há pouco,
e saiu porta fora.
De manhã os
filhos notaram a falta do pai. «Foi trabalhar e só vem noite dentro»,
disse-lhes a mãe. E era já alta noite quando a porta se abriu de mansinho. Era
o regresso. Entrou o Francisco seguido do compadre Barnabé, sorridentes,
camisas ensanguentadas e cada um com seu saco às costas. O saco do Francisco
estava roto e pelo rasgão saia uma perna da vítima…
A mãe, aflita,
perguntou: «Têm a certeza de que ninguém vos viu?!...» Foi Barnabé, já
habituado, pois já não era o primeiro que liquidava, que respondeu: - «-Calma!
Não esteja nervosa. O servicinho foi feito como manda a praxe. Mas que belo
bicho, comadre. Criado com batatas e hortaliça cá destas nossas courelas, que
belos presuntos vamos ter, sem corantes nem conservantes - o tradicional e genuíno
produto que ainda se encontra nos lugares mais recônditos do nosso Portugal.
Nem os do Alentejo, criados com bolota, têm o mesmo gosto!...»
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