sexta-feira, julho 31, 2009

A SEGUNDA FUGA




( 1964)

À ATENÇÃO DOS POSSÍVEIS LEITORES
Este relato está a ser feito ao "correr da pena" e, por isso, a narração dos acontecimentos, às vezes, não obedece a uma sequência lógica. A descrição é muitas vezes interrompida por factos que se interpõem, embora se interligam. Daí uma espécie de "baralhada" difícil de destrinçar. No entanto, uma correcção final colocará os episódios nos seus devidos lugares, os capítulos bem definidos e a pontuação bem colocada. Até lá, vou continuar o meu regresso ao passado... Com um misto de revolta... e de saudade!
I
A situação complicava-se de dia para dia e era através do pequeno "transistors" que escutávamos as Rádios das plantações de uma Sociedade belga que ia informando os seus gerentes da movimentação dos rebeldes.
As "tropas" dos revoltosos avançavam a partir da fronteira Norte e depois de terem chegado à vila de Djolu, preparavam-se para continuar a marcha em direcção a Mompono donde seguiriam para Boende e daí para a capital da província do Equador, a cidade de Bandaka.
As populações denotavam evidentes sinais de nervosismo e era necessário mostrar o maior sangue frio para não desencadear reacções incontroláveis. Uma ordem que se pronunciasse num tom de voz acima do normal, bastava para que da parte dos trabalhadores houvesse uma reacção hostil, e o trabalho, embora executado, o fosse por entre frases pouco dignificantes, em relação ao "branco".
Se durante o dia, era difícil fazer frente a esse clima de insegurança e até, algumas vezes, de pânico, com o cair da noite, a tensão aumentava de tal maneira que era impossível conciliar o sono. O mais ligeiro estampido da madeira ou de qualquer barulho no exterior, causava um mau estar indescritível e uma sensação de insegurança difícil de descrever.
Há alguns dias de cama devido a um problema numa perna, motivado pela má circulação, esse estado de coisas mais contribuía para que o moral estivesse bastante baixo. O medico amigo que me tratava, - um italiano que trabalhava numa plantação de borracha de uma Sociedade belga - todos os dias, via rádio, me aconselhava a deixar a Plantação e embarcar para Kinshasa, pois o meu estado carecia de cuidados particulares. Apesar disso e arriscando também a vida de minha mulher que teimava em não me deixar, fui protelando a partida, até porque meu sócio fazia questão de não abandonar o seu posto. Os dois tínhamos vivido momentos difíceis e não seria honesto deixá-lo só, para enfrentar essa horda de malfeitores que se aproximava.
Entretanto, o meu estado de saúde agravou-se e o médico depois de me ter administrado um tratamento à base de cortisona, intimou-me a partir, caso contrário não tomaria qualquer responsabilidade pelo que acontecesse.
Era desaconselhado o percurso por estrada a partir do cruzamento para Boende, pois segundo as rádios da Sociedade Belga que interceptávamos através dos pequenos "transistors" acima referidos, era natural que os revoltosos tivessem já postos de controlo nesses caminhos.
Optou-se então pelo percurso por estrada até Bokoli e daí até Baringa por rio. E começou então a odisseia da nossa "fuga". Com os revoltosos quase a chegarem à nossa Plantação, planeámos a nossa saída, - eu, minha mulher e a mulher de meu sócio. Este, por questões pessoais que eu, por respeito e amizade, nunca procurei saber, recusou-se, terminantemente, a abandonar o seu posto.
Auxiliados pelo médico italiano e com o concurso do pessoal da gerência da Plantação belga, numa tarde de Setembro de 1964 abandonámos o N'gongo, numa carrinha Opel. No trajecto, ao passarmos pelas aldeias indígenas, éramos insultados e ameaçados pelas populações, já industriadas pelos revoltosos no ódio contra o branco. Percorremos assim cerca de 160 quilómetros até chegarmos a uma outra Plantação da mesma Sociedade. Conduziram-nos então a um pequeno porto nas margens do rio Maringa onde nos esperava o Jean Marie, um amigo francês, com uma pequena baleeira a motor. Devido às dimensões da embarcação e à tempestade tropical que se avizinhava, mas que já se fazia sentir nas águas do rio, só minha mulher e a do meu sócio partiram para Baringa. Com o médico e o director da Plantação, o Vandervelt, um holandês de quase dois metros de altura, fiquei à espera no pequeno ancoradoiro.
Entretanto, a tempestade abateu-se sobre a região e o vento e a chuva fustigavam o armazém onde nos encontrávamos. Os relâmpagos zebravam o céu e as águas do rio começaram a agitar-se assustadoramente. Ao lembrar-me da baleeira que partira, pedi a Deus que a fizesse chegar depressa ao porto de Baringa e a mandasse de regresso para que eu pudesse partir, pois as atitudes dos indígenas que chegavam não indiciavam nada de bom... Eram muitos os boatos e sussurrava-se até que os rebeldes tinham já assassinado alguns brancos e se dirigiam para Bukulikila, precisamente a Plantação que evacuava os seus produtos pelo "beach" onde nos encontrávamos. A chuva era cada vez mais forte, o tempo passava e a preocupação aumentava!... Teria a embarcação conseguido chegar? Teria combustível suficiente para o regresso? Teria sido interceptada por algum grupo de insurrectos?!... Horas de angústia e desespero difíceis de descrever... O desânimo começava a apoderar-se de mim e não fossem as palavras de encorajamento dos dois amigos holandeses, não sei com conseguiria superar tanta ansiedade, tanta angústia e tanto desespero!
Há três horas que a pequena barcaça tinha partido e por mais que tentasse apurar o ouvido nos intervalos das rajadas do vento, não se ouviam quaisquer ruídos que anunciassem a sua chegada. A noite tropical aproximava-se e o desespero aumentava... De repente, muito longe, um barulho diferente... e logo a seguir Jean Marie acenando e, por gestos, indicando que era preciso partir rapidamente... Sem parar o motor, a barcaça chegou-se mais à margem e eu subi, limpando ainda as lágrimas que a despedida fez brotar dos meus olhos cansados. E já a bordo, abraçado a Jean Marie, eu chorei! Perguntei, implorei... Tudo correu bem?... «Que sim. Estavam a salvo as duas. Fora difícil a viagem. Muita chuva, muito vento, forte trovoada, ondas enormes... Foram mesmo obrigados a parar numa cabana de pescadores, á beira rio, para se enxugarem e se aquecerem... mas chegaram!...»
E, graças a Deus, eu também cheguei. A rezar!... São intraduzíveis as sensações que experimentei nessa altura - alegria por ter chegado e encontrado minha mulher bem, e preocupado pensando no que poderia acontecer ao meu sócio que se tinha recusado a acompanhar-nos.
Depois de uma noite em que acordava ao mais ligeiro ruído, chegou a manhã tão desejada. Era tempo de procurar transporte para chegar pela estrada de terra batida a Basankusu, distante de 200 quilómetros, de onde poderíamos tomar o avião para Kinshasa. Eram poucos os veículos disponíveis, pois os que restavam corriam o risco de serem confiscados por elementos armados, à solta, um pouco por toda a parte.
Depois de algumas diligências e graças à boa vontade de amigos que decidiram ficar e não abandonar o que lhes pertencia, um deles prontificou-se a conduzir-nos a Basankusu, antes que a situação se deteriorasse mais, pois todo o pessoal da Missão Protestante onde funcionava um Hospital de leprosos, já tinha sido evacuada por ordens do seu Centro de Coordenação da capital. E isso era um mau presságio. Os Missionários, quer se tratasse de católicos quer de protestantes, eram os últimos a abandonar os seus postos de evangelização do interior. A esse respeito é bom sublinhar a influência da religião nas populações do interior do país. Os missionários dos dois credos, mas sobretudo os das Missões católicas - pese embora o aspecto negativo de alguns procedimentos, entre os quais aquele que consistia em ministrar os sacramentos (baptismo, comunhão, casamentos, etc.) a troco de mão de obra barata - contribuíram grandemente para a educação moral e cívica dessas populações perdidas nos confins da floresta tropical. Muitas Missões possuíam oficinas onde ministravam ensinamentos relacionados com várias artes e ofícios. Tive ocasião de conhecer verdadeiros artífices saídos dessas escolas!...
Saímos então de Baringa e ao passarmos pelas aldeias que ladeavam a "estrada", os insultos e vaias repetiam-se e a frase mais ouvida era "Kenda na ndako na yo. Tika boka na bisu..." ( vai-te embora, deixa a nossa terra...), sempre pronunciada em tom ameaçador. Depois de cerca de três hora de viagem, sempre debaixo de enorme tensão sem saber o que nos poderia acontecer ao dobrar da cada curva, chegamos, finalmente ao aeródromo de Basankuso. A pista era de terra batida e, curiosamente, nela tinha desembarcado vindo de Leopoldville a caminho do interior, há cerca de catorze anos. Recordo ainda esse tempo distante e os dias que permaneci na pequena vila, onde tinha nascido a mulher com quem viria a casar e posteriormente também os meus dois filhos. Curioso também o facto de eles terem nascido no mesmo Hospital em que nasceu a mãe. Era um Hospital com uma equipa médica constituída por médicos de várias nacionalidades e de quase todas as especialidades, incluindo uma equipa de cirurgia com fama granjeada ao longo de muitos anos. Estava agregado à Missão Católica de Mill Hill e o serviço de enfermagem era assegurado por freiras. Cobria em termos de saúde uma extensão cujo raio devia medir cerca de duzentos quilómetros! Esclareça-se que na área abrangida as deslocações faziam-se através de picadas ou por via fluvial, em barcos a vapor, com uma espécie de dobadoira a fazê-lo deslizar pelas águas turvas desses grandes rios interiores do Congo.
Voltando à pista de terra batida, recordo-me que ela me fez viver nesses longínquos tempos, momentos de verdadeira alegria. Durante o tempo que estive na Vila de Basankusu antes de partir para o interior, para ocupar o posto de estagiário nas Plantações de borracha, palmeirais, café e cacau, situadas nas margens do rio Maringa, o "aeroporto" era um lugar de peregrinação todas as sextas-feiras. De facto era nesse dia que todas as semanas chegava no avião, vindo de Leopoldville, no velho DC3, juntamente com o correio, os víveres frescos que nos traziam os sabores da terra natal lá tão longe...
Quase toda a população da pequena Vila, tanto indígena como estrangeira, se dirigia por volta das 10 da manhã ao aeroporto para assistir à chegado do avião. Logo que começava a ouvir-se, lá ao longe, o roncar dos motores, todos os olharas se viravam para o céu pardacento. Ao fundo, junto às palmeiras que faziam a divisão entre a terra cultivada e a floresta, uma coluna de fumo erguia-se no céu. Eram duas as suas funções: mostrar ao piloto o começo da pista e ao mesmo tempo indicar-lhe a direcção do vento. O avião aproximava-se, ronceiro, tomando o rio como referência, e descia sobre ele como que a querer mirar-se nas suas águas. A pouco e pouco ia perdendo altitude e fazia a aproximação à pista por entre duas palmeiras que lhe servia de balizas. Depois... a aterragem, com uma nuvem de poeira vermelha a escondê-lo de todos. Sempre pachorrento ( a velocidade máxima para levantar voo não passava dos 300 quilómetros!...) lá se dirigia para a aerogare, uma casa térrea, em tijolo, e coberta com zinco. Depois era a descarga dos passageiros, uns que vinham pela primeira vez, outros que regressavam da capital onde tinham ido em negócios; seguia-se a retirada do correio e de várias caixas de víveres e outras mercadorias... Era de facto um dia inesquecível!...
Porém, naquele dia da fuga, tudo era diferente...
Muita gente no aeroporto. Muitos indígenas, freiras, alguns padres das Missões vizinhas e um avião bojudo que acabava de se imobilizar junto à aerogare, agora já sem cobertura e com os muros degradados! O avião com a sigla da ONU pintada no bojo vinha buscar os religiosos que ainda restavam. Um oficial congolês não sei a que título presidia à escolha daqueles que deviam embarcar. Como havia muitos europeus, ele decidiu que só embarcariam as senhoras, pois a lotação do aparelho não comportava todos os que queriam partir... Um sacerdote opôs-se a essa discriminação e pediu que se desse prioridade a senhoras sim, mas também a outras pessoas independentemente do sexo ou profissão. Como estava doente colocaram-me na frente da fila com minha mulher, mas logo o graduado e seus adjuntos se opuseram, objectando que eu seguiria, mas minha mulher ficava... Nessa altura uma freira que já subia para o avião ao ouvir a ordem do militar, voltou atrás, e com uma voz que não admitia réplica ordenou: «Este senhor vai e sua mulher acompanha-o, porque eu cedo-lhe o meu lugar. E eu fico!...» Estupefacção do militar e dos seus sequazes! Finalmente, e depois de alguma discussão lá embarcámos todos rumo a Kinshasa...
O pequeno "Dakota" com os seus dois ronceiros motores e o interior a denunciar a sua avançada idade, ao descolar, utilizou quase toda a pista, pois a carga que levava exigia mais esforço e maior distância. Com os motores a toda a velocidade, lentamente, lá começou a subir e foi com alívio que vimos os avisos luminosos da descolagem apagarem-se. Recordo-me que não havia lugares sentados para todos e muitos dos passageiros iam sentados no chão e agarrados às cadeiras...
Já no ar, o pensamento teimava em voltar ao N'gongo, numa esforço impossível de tentar imaginar o que por lá se passava. A hostilidade dos habitantes das aldeias por onde tínhamos passado, faziam-nos temer o pior e fazia prever as mais diversas situações, tais como as que tínhamos vivido em 1960 aquando da independência do país...
Entretanto, o voo continuava, e depois dos safanões da praxe sempre que passávamos Mbandaka, situada na linha do Equador, o velho DC3 desceu um pouco e podíamos ver o fumo de algumas aldeias indígenas ao longo do rio. Para quem não conheceu o Congo, deve esclarecer-se que, em todos os voos para o interior, os pilotos orientavam-se pelos rios e por isso, seguiam o mais perto possível dos seus cursos. Não havia qualquer serviço de balizagem ou sinalização e a navegação aérea era assim feita. Os pilotos, quase todos de nacionalidade belga, tinham grande experiência e possuíam vastos conhecimentos sobre a hidrografia do pais. Durante os tumultos de 1960, logo após a independência, esses homens do ar, realizaram verdadeiros milagres aventurando-se, em voos rasantes, arriscando a própria vida para salvar pessoas isoladas!...
Voltando aos rios do Congo, eles eram todos navegáveis e os barcos percorriam-no de lés-a-lés, abastecendo as feitorias de mercadorias, e transportando para a capital, no regresso, os produtos ali produzidos ou fabricados, como por exemplo: borracha, óleo de palma, coconote, café, cacau, arroz, etc. De quinze em quinze dias, durante o dia, ou alta noite, lá silvava a sirene anunciando a sua chegada ao "beach", ou cais. Recordo os meus primeiros tempos de Congo, na década de 50, em que a chegada do barco, quer fosse de noite, quer de dia, era motivo de grande alegria: nele chegava o correio da terra distante, os mantimentos que nos enviavam da sede da Companhia e as mercadorias para as cantinas da Plantação!... Sozinho, perdido no mais recôndito "buraco" da floresta tropical, com 350 homens, repartidos por plantações de palmeiras, de borracha, de café e de cacau, a chegada do barco da Otraco (Office des Transports du Congo) era, para mim, como que um bálsamo que vinha amenizar a solidão. Juntavam-se os trabalhadores e, muitas vezes, éramos obrigado a fazer a descarga ou a carga, consoante ele vinha, ou regressava, de noite. Muitas vezes, à luz do potente projector do barco alimentado pelo gerador do mesmo, os carregamentos de produtos com destino à capital, terminavam já de madrugada. Como o barco só navegava de dia, havia que aproveitar a noite para outros serviços...
Todos os barcos, nessa altura, transportavam passageiros e tinham quartos para quem quisesse viajar neles. Havia um cozinheiro a bordo e bastava levar os ingredientes para que o cozinheiro preparasse as refeições que eram servidas numa sala de jantar com todo o asseio e educação. Quando minha mulher ficou grávida do primeiro filho, a conselho do médico que vivia a 160 quilómetros de distância, fizemos a viagem por barco até Basankusu. Foi uma viagem magnífica e inesquecível que durou três dias, Maringa a baixo... Era uma paisagem indescritível quando viajávamos durante o dia - nas margens, na densa floresta tropical, macacos, aves e outros animais habituados ao barulho da embarcação, deliciavam-nos com as suas traquinices!... Ao chegar da noite, o barco imobilizava-se nos ancoradoiros e esse espaço de tempo era aproveitado para carregar lenha que alimentava as caldeiras a vapor que faziam mover a tal dobadoira de que já falei. Às vezes era difícil dormir por causa do barulho dos carregadores e também por causa dos mosquitos que, mesmo com o mosquiteiro a cobrir o beliche, conseguiam chegar até nós e ferrarem... Os comandantes dos barcos eram congoleses e todos possuíam, não só conhecimentos da navegação fluvial, como também outros conhecimentos, a par de uma educação muito razoável, senão perfeita.
Voltando ao voo Bansankusu-Kinshasa, dizia eu que o avião tinha baixado e que era possível, lá do alto, distinguir as cabanas das aldeias e ver o fumo que delas saía. Entre os passageiros encontravam-se missionários, freiras e outros civis, homens e mulheres. Já quase a chegar ao destino, um dos motores começou a "tossir", fez-se silêncio no interior do aparelho e um padre, desapertou o cinto de segurança, ajoelhou-se e começou a rezar... Ao contrário do que acontece hoje em quase todos os voos, nesse tempo e nas linhas aéreas do interior do Congo, não havia hospedeiras. Geralmente eram três os membros da tripulação - o piloto, um co-piloto (às vezes) e um mecânico. Por isso nesse momento de inquietação, não houve ninguém que viesse tranquilizar ou explicar o que se passava. Cada qual podia fazer a sua avaliação pessoal. Assim aconteceu e quase poderia garantir que não houve propriamente pânico. Depois de sair do inferno... é difícil ter-se medo... Entretanto, e com a hélice do motor direito "em bandeira", o avião adernou um pouco e foi baixando, baixando... e de repente o asfalto da pista à vista! Dois ou três solavancos, uma pequena derrapagem, uns ziguezagues e, por fim o deslizar sereno do avião em direcção à aerogare.
Como já o disse os pilotos eram experientes, mas acrescente-se que durante a minha permanência de 30 anos não se registou qualquer acidente com os aviões apesar dos rudimentares, podíamos mesmo dizer "artesanais", meios de navegação aérea. Muitos sustos, é verdade, mas sem consequências de maior. Em viagens do interior para a capital ou vice-versa, quando passávamos a linha do Equador, raro era o voo em que não houvesse que contar. Muitas vezes era tal turbulência e os poços de ar, que todos os passageiros emudeciam. As trovoadas e as tempestades tropicais com chuvas intensas, eram tão fortes, que o comportamento do avião era o de uma cadeira de montanha russa!... Muitas vezes, a chuva, juntava-se a nós, entrando pelas minúsculas frinchas das velhas carlingas...
De vez em quando o avião era desviado da sua rota porque era necessário ir buscar um doente a uma Plantação perdida na floresta e então aterrávamos em pistas cobertas de capim e era um "espectáculo" estranho ver as asas do bimotor a ceifar as ervas que encontrava na pista. Sucedia que os passageiros não eram informados da alteração da rota e podem adivinhar a sensação de medo quando se acendiam as luzes para apertarmos os cintos e de repente, pelas janelas, víamos os arbustos a serem degolados e o avião a rolar envolto numa nuvem de pó!...
Aeroporto de Ngili. Estávamos, pois junto da aerogare. Calaram-se os motores e a pequena escada aproximou-se do avião...
O desembarque. Militares armados. Arrogantes, indisciplinados: - «As bagagens? Abram as malas...» Que bagagens, quais malas?!... Se não temos nada a não ser a roupa que temos vestida... Uma senhora da Cruz Vermelha interrompe o "assalto"... «Por aqui!...» - diz ela. Avançamos. Ninguém que conheçamos. E da nossa Embaixada em Kinshasa? Nem rasto... Aliás, já em 60 tinha acontecido a mesma coisa. Estávamos entregues a nós mesmos. Alguém se ofereceu para nos conduzir do aeroporto até à cidade. São cerca de 30 quilómetros e fizemos já o percurso de noite.
Não tínhamos notícias do que se passava no interior e eram tantas as contradições nas notícias ou nos boatos, que não sabíamos em quem acreditar. Tanto ouvíamos dizer que os rebeldes estavam de posse de toda a nossa Região, o Alto Congo, como se dizia que um grupo de mercenários os tinha rechaçado e eles fugiam em direcção a Gemena...
No dia seguinte e devido ao agravamento do meu estado de saúde, fui internado no Hospital da Universidade de Lovanium. Ali permaneci durante quinze dias. Registo aqui o facto de ter sido assistido por um médico angolano de apelido Andrade, formado pela Universidade de Coimbra, que tinha fugido de Portugal para Brazaville, e veio depois para Kinshasa, onde exercia a sua profissão no Hospital da Universidade. Evitei sempre abordar questões políticas, pois logo me apercebi que era um assunto que o incomodava, dada a sua condição de "foragido" à ditadura que então prevalecia em Portugal. Profissional competente senhor de um humanismo e de uma educação esmerada, foi o primeiro homem negro a convencer-me, - apesar de todos os efeitos negativos que dela possam advir - que a "colonização", quando feita como um verdadeiro sacerdócio, deixa marcas indeléveis da índole do povo colonizador.
No Hospital e por intermédio de minha mulher que diariamente me trazia notícias, eu ia sabendo o que se passava, ou o que se dizia lá fora. Mas eram muito vagas as informações que nos chegavam vindas do interior do país. No aeroporto vivia-se um clima de incerteza e desânimo. Os aviões que chegavam dos mais longínquos cantos do território eram "assaltados" por uma onda de pessoas, ávidas de saber notícias dos seus familiares que tinham ficado entregues a si próprios, só Deus sabia como!
Entretanto saí do Hospital e a realidade falou mais alto do que a doença: tinha perdido tudo pela segunda vez; tudo o que tinha resumia-se ao que tinha vestido!... Tudo o que possuía tinha ficado nas mãos dessa turbamulta industriada para destruir o que encontrava ela frente.
A certa altura correu o boato de que os rebeldes teriam feito reféns todos os europeus que se encontravam na nossa região, incluindo o meu sócio, e se dirigiam para a cidade de Kisangani. Com eles viria o médico italiano, o amigo que me tinha acompanhado na doença. E então começaram as viagens para o aeroporto sempre que constava que um avião chegava do interior. Um sentimento de esperança à chegada e um sentimento de desespero logo que do avião não saiam as pessoas esperadas! A presença da soldadesca era cada vez mais notada e como não era paga, todos os pretextos serviam para extorquir dinheiro... O aeroporto e instalações, que tínhamos conhecido com características aproximadas dos outras de então, no que diz respeito a pessoal especializado, - na torre de controlo, nos serviços da Alfândega e nos outros serviços subjacentes - estava transformado num acampamento de nómadas, em que as condições de higiene eram o primeiro sinal de que civilização nem sequer por ali tinha passado!...
Eu continuava sem emprego, acolhido em casa de amigos e sem dinheiro para poder comprar roupa, pois nada tinha trazido!
Um dia, num avião vindo de Kusangani, chegou, finalmente, o médico italiano. Mas sozinho!... Logo que soube fui visitá-lo à clínica da Sabena onde tinha sido internado. Chorámos nos braços um do outro! Eram más as notícias que me trazia... O Rodrigues, com outros seis europeus, tinham sido assassinados, pelas costas, com rajadas de metralhadora! Os rebeldes tinham-no poupado a ele por ser médico. Podiam precisar dele e, por isso, o levaram de Mompono para Kisangani. Uma viagem feita ao longo de cerca de um mês, ora de camião, ora a pé, conforme o estado das picadas o permitia. Comida, era a que encontravam ou roubavam aos habitantes das aldeias por onde passavam. Arroz, frutos e mandioca conjuntamente com peixe seco ou carne de antílope ou javali, constituíam a base das refeições, que não tinham horas nem locais certos. O mais difícil de suportar tinha sido a sede e, como não havia outra hipótese, bebiam a água dos rios, alguns com cadáveres a boiar!... Por vezes era chamado para acudir a algum mutilado e como não tinha nada para remediar a situação, limitava-se a estancar o sangue com tiras da camisa que vestia e a aconselhar a evacuação para o Hospital mais próximo... E onde é que havia hospitais? E os que ainda existiam, tinham apenas as paredes direitas. E não eram todos... porque muitos, depois de pilhados tinham sido destruídos a tiro de morteiro. Uma selvajaria difícil de imaginar!
Muitas vezes tinha sido ameaçado de morte, chegando a estar encostado ao muro para ser fuzilado! Sensação estranha e inenarrável! Ao ouvir a descrição recordei os momentos por que tinha passado em 1960, no Campo militar de Boende, também eu ameaçado de morte e por várias vezes obrigado a encostar-me ao muro para ser passado pelas armas...
A independência tinha sido proclamada no dia 30 de Junho de 1960 e logo durante a cerimónia, o episódio do roubo da espada do Rei Balduíno por um congolês, deixava no ar um prenúncio de presumíveis convulsões! E foi o que aconteceu. A rebelião nos quartéis à volta de Kinshasa em breve se espalhou por todo o país e a soldadesca, embriagada e drogada tomou conta do país. Os oficiais belgas e os seus colegas congoleses em breve viram que eram incapazes de dominar as suas tropas. Alguns oficiais belgas foram presos, outros espancados e em poucos dias o país era um verdadeiro caos...
E não pude evitar que a minha imaginação recuasse no tempo e recordasse...
Para aqueles que nunca deixaram a Europa, e que conhecem África apenas através dos livros, ela é uma terra privilegiada - a terra do dinheiro, das aventuras, da caça e do mistério. Manhãs encantadoras, dias quentes e as noites frescas. O branco é rei, o trabalho não existe e nada lhe falta...
E para quê destruir esse mito e mostrar-lhes a verdade nua? Para quê mostrar-lhes esta terra despida de ilusões e miragens, no seu verdadeiro aspecto? Para quê fazer-lhes sentir esta "febre dos trópicos" contra a qual nem o quinino nem o uísque são eficazes? Para quê fazer-lhes ver que esta terra rouba tudo ao homem que a ela se entrega confiado no futuro?
E mais difícil seria ainda fazer-lhes compreender que que apesar de tanto sofrimento, há homens que amam essa terra e que não mais querem separar-se dela. Amam-na, porque nela sofreram e, amando-a, não a podem deixar...
Transcrevo aqui, a propósito, o que escrevi no N'gongo, em 15 de Novembro de 1960 e que encontrei depois aqui num Jornal regional, É a história verídica do velho Silva, nessa altura com 78 anos de idade, 54 passados no Congo:
«Sentado numa cadeira de verga, o velho espreitava o Sol que desaparecia lá ao longe por de trás da floresta verdejante e pensava ainda na carta que acabara de receber dum parente afastado que vivia na Beira, a sua Beira Alta, que há tanto tempo deixara!
Maquinalmente tirou a carta do bolso e releu-a pela terceira vez. Queria ver se, à força de tanto a ler, acabaria por seguir os conselhos do primo Silvestre que lhe dizia para deixar a África e fosse repousar para a sua aldeia que, talvez, já não conhecesse...
- Que se deixasse de mais trabalhos e que fosse até Portugal. Se não quisesse viver na aldeia, que diabo, iria para a cidade e passaria o resto dos dias da sua vida tranquilo e sem nada lhe faltar. Já era tempo que voltasse à terra onde nascera. Ou queria ele morrer nessas terras longínquas, sem amigos, sem ninguém!... Que vendesse o que possuía, que segundo constava era bastante, e que fosse, que fosse embora...»
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O Sol tinha desaparecido completamente e a noite começava a cair. Além na estrada, os homens passavam de regresso da caça com arcos e flechas, mas sem qualquer produto do seu esforço. Amanhã recomeçariam sempre esperançados. As mulheres voltavam do rio onde tinham ido buscar água, com os filhos às costas e os baldes na mão.
Aos ruídos variados do dia, sucedia o silêncio da noite - esse silêncio das noites tropicais que põe o homem frente ao homem, que o faz meditar, querer, chorar e Ter esperança. Esse silêncio que lhe transporta o pensamento mais perto de Deus em busca de um apoio, de uma companhia...
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Duas lágrimas rolaram-lhe pelas faces já enrugadas. A aldeia onde nascera passara-lhe pela mente numa visão saudosa e fugidia. Cinquenta e quatro anos. Tanto tempo!... Como o tempo passa! E ele que viera a África apenas para arranjar o suficiente para construir uma casita e amealhar uns patacos para a velhice... Era assim que ele pensava quando embarcou e, afinal, viera e nunca mais voltou! Tudo esqueceu a pouco e pouco. Tudo, menos os Pais que, enquanto foram vivos não deixou que lhes faltasse coisa alguma. Tinha a consciência tranquila. Pobres Pais! Deus os tenha em descanso.
Os lábios mexeram - talvez uma prece a Deus pelos Pais que nunca mais voltara a ver.
As estrelas cintilavam no céu e o luar fazia brilhar as folhas dos cefezeiros ainda orvalhadas da chuva que tinha caído de tarde. Também o luar quisera mostrar-lhe a beleza da sua obra, dando-lhe assim mais força para não seguir os conselhos que lhe davam na carta. Não podia abandonar assim o que tanto lhe custara a fazer e que, afinal, era agora um pedaço do seu ser. A sua mocidade ali estava enterrada naquela terra. As ilusões da sua juventude dormiam à sombra daquelas plantas. Aquela terra viu-o chorar de saudades quando chegou. Viu-o depois lutar para esquecer, entregando-se ao trabalho, despreocupado do resto. Viu-o erguer as mão a Deus em preces ardentes, pedindo força e coragem. Viu-o, enfim, sorrir quando os primeiros frutos amadureceram...
E as frases da carta dançavam-lhe na mente: - «Sem amigos, sem ninguém...» Como se enganam aqueles que nunca lutaram sozinho! Nunca sentiram a emoção forte de ver nascer do esforço próprio uma obra que é nossa, pela qual sacrificámos tudo e que de tudo nos afastou, mas que prova que o homem soube ser homem e marcou a sua passagem neste mundo que foi criado para ele.
«Que vendesse o que tinha...» - Vender! Será possível que se possa vender uma parte do nosso ser? Depois de tanta canseira, tanta privação, abandona-se assim, num momento, o que tanto nos fez sofrer?
Não é agora que as ilusões se desvaneceram, que as pernas trôpegas se recusam a grandes esforços, que a vida nada mais nos pode dar, e que a terra mostra ao homem o fruto do trabalho de tantos anos que se abandona o campo da luta onde se travou a batalha e onde as plantas cresceram com o sangue derramado...
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A brisa fresca da noite brincava com a s folhas dos cafeeiros fazendo deslizar as gotas d'água, lentamente, pelas nervuras, como lágrimas por uma face enrugada...»

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