sábado, julho 11, 2009

A PAPAGÁLIA



Em tempos muito remotos – tão remotos que ainda toda a bicharada falava – existiu à beira mar, um país original habitado unicamente por Aves.
Fundado pela família dos Psitácidas que adoravam a água, o reino do Silêncio, (nome dessa nação da passarada) era banhada a ocidente por um mar de água doce, que não só contribuía para a fertilização das suas terras, mas que também, e graças às suas correntes, auxiliava os seus habitantes nas migrações que faziam.
Durante décadas, Havisrara I, ocupou o poleiro que lhe servia de trono sem que a existência pacífica dos seus súbditos sofresse muitas perturbações, pois os que não se sentiam bem, emigravam, e os que resolviam ficar, mais pena, menos pena, lá iam vivendo …
Porém, como a evolução dos tempos nem a passarada poupa, no Reino do Silêncio, começaram a aparecer os primeiros sintomas de mal-estar que iriam tomar o carácter de conspiração logo após a morte do monarca.
Sucedeu-lhe Havisrara II que no início do seu reinado tentou ainda conciliar as opiniões. Em vão!...Pouco tempo depois era acusado de imitador, porque, diziam, tendo aprendido a papaguear com o seu antecessor, outra coisa não poderia fazer que não fosse repetir o que tinha ouvido.
O descontentamento foi alastrando até que numa manhã de nevoeiro o inevitável aconteceu: rebentou a deplumação!
Um grupo de psítacos, que ficaria conhecido por Movimento dos Papagaios, do qual faziam parte também as Araras, as Catatuas e outra passarada miúda, atacou o Poleiro Real à bicada, desempoleirou o monarca, abriram as gaiolas e proclamara a Aviscracia, ao mesmo tempo que mudavam o nome à terra-mãe que de Reino do Silêncio que era, Papagália ficou a chamar-se.
À surpresa que tal facto causou, seguiu-se a euforia que caracteriza tais acontecimentos e que tanto entre os homens como entre os bichos, chega por vezes também a inverter o sentido dos mesmos.
Em palratórios emplumados, os chefes dos bandos que se tinham formado logo após a proclamação da Aviscracia, começaram os seus voos de propaganda. Ao mesmo tempo que denunciavam os erros dos antigos monarcas, prometiam à passarada o céu inteiro para voar. Não haveria mais discriminações, nem de plumagens, nem de vocabulário. Era preciso união entre todos, pois derrubada que foi a escravatura, os papagaios unidos jamais seriam vendido.
O bando dos papagaios roxos pintados às pintinhas (PRPP), o dos papagaios cinzento-pardos (PCP), o dos papagaios de penas sarapintadas (PPS) o dos papagaios de penas matizadas (PPM), o dos papagaios sem distinção (PSD) o dos papagaios com dois sinais (PCDS) e a união dos palradores (UDP), atroavam a floresta inteira com constantes papagueados, tentando, cada qual, conquistar o maior número possível de aderentes.
Atraídos pelo barulho, regressaram à terra-mãe papagaios há muito ausentes. Anchos, de pluma luzidia e bico adunco, com vocabulário aprendido na estranja espanejando vaidosos, eles deslumbravam a passarada incauta e confiante.
Autênticos realejos movidos por corda invisível, depressa dominaram toda aquela gente alada que durante muitos anos fora privada de outro vocabulário que não fosse o que os monarcas ensinavam…
Passaram os dias, meses e os anos foram também passando, mas como nem só de papaguear vive o papagaio…
A euforia inicial cedeu o lugar ao desencanto: as araras e as catatuas que tinham tomado parte no movimento, sentiam-se frustradas e algumas migraram até.
Os papagaios e sobretudo os estrangeirados eram agora os senhores e mandadores e ocupavam os melhores poleiros. O aumento da população motivado pelo regresso de milhares de Aves, fez com que começassem a escassear as bagas nas árvores e avizinhava-se um período negro de fome.
Tudo tinha mudado, é certo, mas com essa mudança nada tinha melhorado!
A Reforma Avícola que tinha sido imposta pelos dois bandos mais influentes, o dos papagaios cinzento-pardos (PCP) e o dos papagaios sem pintas (PSP), não fez mais do que exacerbar a paciência da passarada.
O bando dos papagaios sem distinção (PSD), de tão desiludido, abandonou os seus lugares na capoeira – uma espécie de anfiteatro natural, constituído pela copa de uma árvore frondosa onde se tomavam as decisões mais importantes – dissociando-se dos outros bandos.
Num esforço derradeiro para fazer face à degradação galopante da ecologia alada, foi pedida a intervenção de uns passarões chamados Etólogos e versados na ciência de depenar sem dor. Pertenciam à família dos milhafres independentes (FMI) mas trabalhavam sempre em associação com o bando dos milagreiros (BM) que era constituído por uma espécie de conirrostros exímios em resolver operações penosas.
Depois de várias auscultações fizeram o diagnóstico, mas como os bandos não se entendiam quanto às medidas sanitárias a adoptar, não puderam os «veterinários» mais fazer do que receitar uns pozinhos para prolongar durante algum tempo mais, a vida da já agonizante Papagália!
Muitos dos papagaios mudavam de plumagem e abandonavam o bando a que inicialmente pertenciam.
Outros perdiam o sentido da orientação e voavam em ziguezagues. Era o começo do fim.
Entretanto, o nome dos antigos monarcas começava a ser evocado como símbolo de um tempo em que sabia bem voar, embora, por vezes, os ventos fossem contrários e o céu bastante limitado!...
Possessos de uma histeria barulhenta, pássaros, passarinhos e passarões, atroavam a floresta numa cacofonia sem par. Finalmente, com a poluição das nascentes e o desequilíbrio ecológico, um surto de psitacose aguda dizimou toda a população que morria esvaindo-se em verborreia malsoante…
E assim desapareceu a Papagália!
Os turistas que hoje visitam esse espaço geográfico onde outrora existiu esse país de Aves, fazem, por vezes, aproximações bastante originais ao ouvirem contar esse passado longínquo, vendo desfilar um presente que parece não ter futuro.
Numa entrevista recente à RTP (Revue de la Transmigration des Perroquets), um desses turistas, ornitologista por desporto e antropólogo por necessidade, chegou mesmo a afirmar que «a Papagália continua a existir, tendo apenas mudado de fauna…»
O que parece corresponder à verdade, pois perante tão grave declaração, não se registou nenhuma reacção dos governantes.
Na dúvida!...
Janeiro de 1983

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