quarta-feira, dezembro 26, 2007

Peadelos


Pesadelos
Sem saber como nem porquê, dei comigo sentado numa cadeira da última fila da sala de aulas da minha neta mais nova…
O "sôtor" não tinha nada daqueles mestres do meu tempo que eram assim mais "pesadotes" na idade e mais escrupulosos no vestir. Este vestia calça de ganga, e oficiava em mangas de camisa. Por falta de um botão, via-se um peito cabeludo onde luzia um fio prateado, na extremidade do qual baloiçava um berloque. Calçava sapatos de ténis que deviam ter nascido brancos, mas que, agora, a idade ou os maus tratos, tinham transformado num arco-íris rastejante. Mas era, na linguagem da minha neta, um professor porreiraço...
Constava que a sua especialidade era a Agricultura, pois possuía uma licenciatura num desses novos cursos, – Ciências Agrárias, se não estou em erro – mas em face da crise nesse sector, virou-se para o ensino e lá conseguiu umas aulas...de português!...
Estava eu nestas conjecturas quando o mestre começou a aula:
«Como já por várias vezes tenho afirmado – começou ele dirigindo-se à turma – quanto a mim, para que o aproveitamento na disciplina de português seja o desejado, devemos acabar com essa parte da gramática a que chamam ortografia. Acabando com ela, suprimem-se os erros ortográficos..."
Engoli em seco, mas achei uma certa lógica no raciocínio, pois se cortarmos o pescoço a qualquer fulano, ele não sofrerá mais de dores de cabeça pensei eu cá p'ra mim.
"Os pequenos – continuou – não gostam da disciplina de português, porque a maior parte das palavras não se escrevem como se pronunciam, ou se pronunciam de maneira diferente da que se escrevem..."
Raciocínio foneticamente muito discutível, mas que deixei passar…
"A ortografia – insistiu – porque só uns tantos a praticam, é um elemento de segregação social. É até uma forma, camuflada, de racismo! Por isso, não só contribui para o empobrecimento cultural, pelo tempo que rouba e pelos sentimentos xenófobos que desperta, como também é responsável pelo enfraquecimento do espírito, tendo em conta o esforço que exige..."
Raciocínio de cariz político-partidário, que fingi não perceber…
"Porque – continuou, já vermelho e a transpirar – a ortografia é, nos nossos dias, uma coisa arcaica que cheira a mofo e não tem cabimento numa sociedade de tecnologias avançadas. Vivemos quase meio século no cárcere do obscurantismo. Há mais de duas décadas que dele nos libertaram!... Então por que esperamos para deitar no lixo as grilhetas que ainda nos prendem a esse passado, (que eu nem sequer conheci!...) mas que dizem ter sido sinistro e castrante, indolente e conservador?!..."
E foi então que me levantei e, revoltado, agarrei o ilustre “pedagogo” pelos colarinhos e expliquei-lhe em altos berros que no "tal passado que ele nem sequer tinha conhecido", a maior parte daqueles que faziam a quarta classe ficava a saber escrever correctamente o português, sem erros ortográficos!...
Entretanto apareceu um “segurança” – é assim que agora são designados os homens a que outrora, nos colégios, se chamavam “ prefeitos” – e sem mais aquelas, pegou-me por um braço e pôs-me na rua. Mas não parei de espernear e foi só quando minha mulher me deu um safanão que eu acordei…

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