sexta-feira, janeiro 08, 2010

A NOITE DA CONSOADA

Noite de Natal. Chove. Está frio lá fora. Acabei de abastecer de lenha o fogão da cozinha. Na lareira da sala, as faíscas ressaltam dos trocos incendiados e as chamas desenham no vidro do resguardo, figuras fantasmagóricas.
Reina grande azáfama na cozinha. Prepara-se a consoada. Toda a gente trabalha. Até os mais preguiçosos…que segundo a “chefe”, são dois: tal pai, tal filho!
Descascam-se as batatas, escolhem-se as couves, cozem-se os ovos enquanto o fiel amigo, o bacalhau, jaz esparramado no fundo de uma bacia cheia de água.
Mesmo ao lado, fritam-se os sonhos, corta-se o pão para as rabanadas. Os bilharacos, alinhados numa travessa, polvilhados com açúcar e canela, já cheiram!
- É preciso descascar os alhos para a consoada, toca a andar…Cortem a broa, ponham o pão nos cestos, vejam se há azeite nos galheteiros, ponham uma cavaca no fogão e a lareira, tem lenha?!... – É a chefe a dar ordens. E ordens não se discutem…
E toda a gente gira, rodopia, e num vaivém constante entre a sala e a cozinha, a mesa vai ficando cheia.
- Falta uma travessa para as batatas, as couves estão quase cozidas e daqui a pouco vou meter o bacalhau…Não há ninguém que me ofereça um aperitivo?... – É de novo a voz de comando da Avó…

Entretanto, chega a hora de nos sentarmos à mesa: batatas com couves, ovos cozidos, bacalhau regado com bom azeite, bom vinho, e começa a ceia!
As luzes cintilam no pinheiro num dos cantos da sala e até o “menino de Jesus”, pequenino, parece espantado com tanto alarido. Há embrulhos e caixas junto ao pinheiro, mas uma ordem dada através de um telemóvel impede que os presentes de Natal sejam abertos antes do meio-dia do próprio dia de Natal! A avó não consegue calar a sua decepção e, espicaçada pela curiosidade que cultiva há décadas, faz ainda algumas tentativas para não respeitar a decisão das netas. Mas em vão…
E, a muito custo, é cumprido o pedido. Só no dia de Natal serão abertos os presentes que o Menino Jesus pôs nos sapatinhos, à sombra do pinheiro.
Come-se, bebe-se, conversa-se. A alegria é contagiante. Um ambiente totalmente natalício, que faz lembrar o meu Natal de menino… E leio o “Natal” de Miguel Torga:
“Nasce mais uma vez,
Menino Deus!
Não faltes, que me faltas
Neste Inverno gelado.
Nasce nu e sagrado
No meu poema,
Se não tens presépio
Mais agasalhado.
Nasce e fica comigo
Secretamente,
Até que eu, infiel, te denuncie
Aos Herodes do mundo.
Até que eu, incapaz
De me calar,
Devasse os versos e destrua a paz
Que agora sinto, só de te lembrar.”

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