sexta-feira, maio 09, 2008
Invocação
Sou, por natureza, optimista. No entanto, quando olho para trás e vejo o começo da caminhada tão distante que já quase se não enxerga, confesso que só com muita força de vontade consigo manter o optimismo.
Nasci nos começos do século passado. Comecei por me deitar em lençóis de linho, tive fatos de burel, estudei à luz do petróleo, dancei ao som da grafonola, cresci aos solavancos, dei marteladas nos próprios dedos, paguei as facturas das dívidas que fiz, aprendi com os erros que cometi, atravessei a vida sem atropelar ninguém e eis-me agora no começo de outro século.
Velho? Quem disse?!...
Bem sei que o tempo está contra mim e que através do calendário e do relógio vai cumprindo a sua missão, modificando-me o corpo. E o que ele já não fez!...
Ao longo dos anos, dos meses, dos dias, das horas, dos minutos e dos segundos ele não parou, e sem dó nem piedade foi fazendo o seu trabalho: com a sua aiveca transformou um jovem rosto rosado numa cara sulcada de rugas que mais parece aquele mapa antigo da minha escola onde estavam assinalados todos os rios portugueses e seus afluentes.
O vento dos Invernos levou-me os cabelos deixando apenas umas repas que circundam uma calva luzidia muito parecida com a do santo patrono da minha aldeia. As pernas, outrora prontas a transpor qualquer obstáculo, tornaram-se pesadas e arrastá-las é o mesmo que puxar uma zorra carregada de calhaus. Do resto do esqueleto não vale a pena fazer a descrição, pois pelo que atrás disse, todos imaginam o seu estado.
Mas o que fazer se é assim que determina a lei da vida?
Nasce-se, vive-se e morre-se. Todos nascemos, vivemos e morremos. Passado, Presente e Futuro. Ora se o Passado já lá vai, se o Futuro a Deus pertence, não será lógico gozar o “agora”, o Presente, aproveitando viver os dias, as horas, os minutos e até os segundos? A vida vem de muito longe, mas ela conhece apenas o presente. Para ela, ontem é morte, e amanhã é um mistério indesvendável.
A felicidade está aqui e agora. Aqueles a quem Deus contemplou com uma velhice saudável devem aproveitar esse bem como uma bênção e agradecer-Lhe sendo generosos e solidários na vida em sociedade, partilhar sacrifícios e responsabilidades, ajudar os que mais precisam e acreditar que mesmo com a nossa pequenez podemos contribuir para um mundo mais fraterno e mais justo.
Dizia meu avô materno, – um homem de bela estatura, nariz adunco, longas barbas, que fazia lembrar um mestre da lei judaica – que a velhice era a última estação antes da paragem final. Palavras sábias!...
Todos sabemos que é impossível voltar atrás, que a carruagem não pára e que qualquer ideia passadista ou conservadora é sempre uma ideia fatalista, inquisidora ou frustrada. Mas sonhar não faz mal. O sonho é o estabilizador da alma. E muitas vezes é o que resta para alimentar o gosto pela vida. De vez em quando invade-me uma espécie de vazio, uma mão cheia de coisa nenhuma. Mas acabo sempre por inventar uma certa arte de fuga substituindo o medo pela alma. E é então que a fé me lembra que há vida para além da morte. Apesar disso e contrariando o poeta que disse que viver sempre também cansa, eu espero que Deus me ajude a suportar esse cansaço ainda por mais algum tempo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Quando de anos um moio já foi feito há muito tempo, voltamos atrás a cada instante.
Mais: Não é voltar atrás, no sentido de recordar, sentir os cheiros, os sabores e todo o manacial de relíquias guardadas no mealheiro do tempo?
Enviar um comentário