quinta-feira, abril 17, 2008

Insónias



Há cinquenta e sete anos que tenho a mesma cozinheira. De mútuo acordo, além de tratar da paparoca, ela também passa a roupa, cose as meias, pregas os botões, escolhe as camisas que devo vestir, as gravatas que devo enrolar ao pescoço e, como já devem ter adivinhado, com toda esta promiscuidade, também me dá ordens. É ela quem manda, ponto final, parágrafo!
Por mais que lhe diga que não quero comidas fortes à noite, ela insiste e ainda ontem às sete da noite lá estava, sobre a mesa, uma açorda de marisco a piscar-me o olho… Refilei e a resposta foi a do costume: «Ó homem, se te faz mal, não comas…» Mas, (maldita gula!...) comi. Resultado: voltas e mais voltas na cama e sono… nicles!
Experimentei todas as artimanhas para que as pálpebras se fechassem e mesmo o truque de contar carneiros não resultou. A certa altura tive até a sensação de que o quarto estava cheio dos ditos lanígeros! Não havia dúvidas, Morfeu estava zangado comigo.
Levantei-me, e pé ante pé dirigi-me ao quarto que me serve de escritório. Não sei se já alguma vez vos disse que o considero como uma espécie de “esconderijo”. Sob o pretexto de que estou a trabalhar, consigo fazer com que ninguém me incomode. Se de vez em quando me batem à porta, basta eu levantar o braço para ela se fechar de novo… Bem sei que nem sempre “a minha chefe” acredita que eu esteja de facto a trabalhar a sério, mas lá faz de contas e assim evitamos a troca de algumas palavras menos meigas… Mas é ali naquele cantinho que me sinto rei e senhor.
Mas voltando à minha “espertina”, mal abri a porta do meu refúgio deparei com um cenário deveras insólito: na pequena mesa, mesmo em frente ao computador, as letras do alfabeto, estavam todas reunidas.
Do A até ao Z lá estavam elas e um pouco mais longe o K , o W, e o Y , com ar desconfiado pareciam aguardar qualquer decisão… A princípio pensei que se tratava das letras do teclado. Mas não. Elas mexiam-se sozinhas e não precisavam de dedos para se movimentarem. Eram mesmo as do alfabeto. Havia também alguns acentos gráficos e sinais de pontuação, mas o mais empertigado e que me pareceu mais nervoso foi ponto de interrogação.
Dos acentos, o til, era o mais descontraído. Das letras, as mais revoltadas pareceram-me o “C “e o “P”. Não me contive e quis saber o que se passava. Respondeu-me o ponto de admiração: «Que se tratava de um plenário convocado a pedido de algumas letras do alfabeto revoltadas com a sua despromoção com a entrada do novo acordo ortográfico. As mais furiosas eram o “C” e o “P”. O “C” não se conformava por o terem suprimido da acção e o “P” reivindicava o seu lugar no baptismo…A entrada do “K” do “W” e do “Y” estava também a ser contestada…»
Instintivamente olhei para a estante dos dicionários e quando pensei na “revolução” que os esperava, perdi o sono de vez. E num acto de solidariedade para com as consoantes que foram suprimidas de certas palavras, comecei a “martelar” furiosamente o teclado do computador, expressando assim, acordado, o meu protesto contra o acordo.

3 comentários:

Artur Leitão disse...

Cinquenta e sete anos com a mesma cozinheira, é uma vantagem, principalmente quando Ela é exímia em petiscos como o "bacalhau verde(?) e outros". Mas é também um acto de confiança, mormente quando o despedimento já nem precisa de "justa causa" e é feito na hora.
E como diz o ditado: Quem bem começa, bem acaba

Artur Leitão disse...

Releio as "Insónias", agora no "P.F.".
Enquanto os acentos têm tendência a ir caíndo, até desaparecerem todos, o que é uma vantagem para a escrita preguiçosa, os "assentos" são cada vez mais cobiçados.
Veja-se o que aí vai de luta pelo assento.

dismore disse...

Pois não é fácil não cair em tentação com esses petiscos. Eu que o diga que volto para casa sempre com a roupa esticada...
Mas se tivesse dormido tinha perdido a revolução das letras que tanto me fizerem sorrir:))