Mal cheguei à rua, apossou-se de mim um
sentimento muito estranho, uma espécie de pressentimento de que qualquer coisa de
muito extraordinária tinha acontecido. Havia muita gente a agitar bandeiras,
gritando, esbracejando, os automóveis passavam a buzinar, enfim, um burburinho
dos diabos. Avancei um pouco receoso, parei no quiosque da esquina, olhei o
jornal que habitualmente costumo comprar e quando vi a primeira página não quis
acreditar!...
Percorri então os títulos dos outros e,
em letras garrafais, todos anunciavam coisas surpreendentes. E comecei a ler:
Aumento das reformas dos pobres; pacto
entre todos os partidos com vista a tirar o país da crise; redução em 50% dos funcionários
públicos; corte no número de deputados e nos seus salários; serviço de saúde
grátis para quem aufere pensões baixas; despolitização da Justiça; reformulação
na Educação; combate à corrupção de gravata; introdução da Cartilha Maternal de
João de Deus nos infantários para o ensino do português; mobilização de todos
os cidadãos inscritos nos Centros de Emprego para procederem à reflorestação da
área ardida; prisão perpétua para os incendiários; criação de uma escola de
formação profissional para políticos e afins; subsídio para os agricultores que
mostrem desejo de cultivar terras abandonadas; fiscalização apertada a todos os
que ostentem sinais exteriores de riqueza; cancelamento de todas as reformas e
outras benesses a pessoas que exerceram cargos políticos ou afins; repatriamento
de todos os profissionais que tiveram de emigrar e colocação nos respectivos
lugares; duplicação do orçamento da Cultura; interdição a todos os governantes
de terem outros trabalhos paralelos…
Nem acreditava no que estava a ler.
Finalmente o bom senso imperou.
De repente alguém me bateu no ombro:
- Acorda, homem! São sete horas! Ontem,
domingo, ficaste colado à televisão à espera do resultado das eleições,
deixaste os trabalhos do Jornal a meio e hoje, não sei como vais ter tempo…
Era minha mulher, previdente como
sempre, a chamar-me à realidade.
Levantei-me estremunhado. Barba, banho,
pequeno-almoço e ala moço que se faz tarde.
E aqui estou nesta segunda-feira, dia 5
de Outubro, que já foi feriado nacional, mas que já não é, - e que segundo
consta nem o Presidente faz a habitual discursata - a manifestar a minha
frustração…O “sonho comanda a vida?” Tretas. Porém, no dizer de Pessoa, “Matar
o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de
realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso.”
E nós já temos tão pouco…