quinta-feira, agosto 30, 2007

A minha companheira

A minha companheira
O que hoje vos vou contar passou-se há muito, muito tempo. Nessa altura ouvia os mais velhos que, em tom jocoso, me falavam da sua vinda como de coisa muito grave se tratasse. Alguns, os mais íntimos, de vez em quando, e mal a ocasião se proporcionava tentavam mentalizar-me. «Lá virá o tempo – diziam-me eles – que, sem dares conta, ela aparecerá...»
- E mais depressa do que julgas! - Acrescentavam com uma pitada de humor os mais crentes em oráculos.
Estava então na minha Primavera e nesses verdes anos não há tempo para reflectir, para pensar ou para ter medo. Era um tempo em que via sempre o céu azul, em que o Sol sorria todos os dias lá no alto, só cresciam flores à minha volta e eu fazia de todos os dias um “sábado à noite”!
Não havia futuro, só o “presente” contava. Era um tempo sem interrogações. Tudo deslizava em roda livre pela bonita e plana estrada da juventude sem que fosse preciso pedalar muito...
Era a época dos sonhos, dos contos de fada, do perfume do amor – “esse fogo que arde sem se ver”, no dizer do poeta.
Mas entretanto…
Entretanto os anos foram-se acumulando, acumulando, até que um dia, cedinho, numa manhã de Inverno em que estava só, ela chegou. Senti um bafo quente no meu pescoço e estremeci! Mas ela enlaçou-me carinhosamente, apertou-me contra o seu peito, e disse-me baixinho: «Cá estou!»
Levantei os olhos e vi um rosto no espelho. Olhos inchados, provavelmente atraentes no passado, mas agora escondidos por detrás de grossas lentes aprisionadas em aros de metal luzidio; da farta cabeleira de outrora restavam apenas, nas têmporas, cabelos brancos, dispersos, qual estriga de linho pronta a ser colocada na roca; na fronte e no pescoço, rugas, muitas rugas, sulcos por onde passaram, como em leito de rio, – em grosso caudal ou em passeio tranquilo – mágoas, alegrias... E as mãos? A pele enrugada, as veias salientes e os dedos trementes não conseguiam esconder toda uma vida de lutas, de canseiras, de incertezas, de lágrimas... e também de muitas alegrias. E como aquele rosto me fascinava!
O seu sorriso trocista, a ingenuidade do seu olhar infantil como que a pedir desculpa de pecado que não se cometeu, atraíam-me…
E como de feitiço se tratasse, ali fiquei por instantes, olhando o espelho. O tempo parecia não ter pressa. E, cúmplices, ali ficámos os dois, contemplando e tentando adivinhar a história daquele rosto. Um esboço de sorriso disfarçava as rugas e a vontade de viver adivinhava-se no luzir dos olhos papudos.
E tanta, tanta alegria naquele olhar cansado mas tão feliz!
Virei-me e olhei para trás. Baixei os olhos e vi-a tentando esconder-se timidamente como que a pedir desculpa pela sua intrusão na minha existência.
E sorrimos. E talvez com medo de me perder ou de que me zangasse, Dona Velhice abraçou-me com tanta força que desde esse dia nunca mais nos separámos. E desde então e como devem já ter notado, andamos sempre de braço dado.





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