quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Cartas...

CARTA A DOM AFONSO HENRIQUES
Peço desculpa por vir incomodar Vossa Majestade e acordá-lo do sono em que mergulhou há quase nove séculos, mas com acontecimentos tão graves no Condado, achei por bem pô-lo ao corrente da situação.
Não tivesse havido aquele precedente de terem querido arrombar o mausoléu em que repousa apenas para tentarem reconstituir o seu perfil biológico e o seu código genético e saberem “coisas” sobre a estatura, os hábitos, a força, a alimentação, a cor do cabelo e dos olhos de Vossa Majestade, eu não ousaria perturbá-lo. Mas já que isso aconteceu, eu também ousei…
Está a decorrer cá no rectângulo um concurso para apurar quem teria sido o maior português de todos os tempos. Consta que incluíram na lista de partida cerca de cem concorrentes, sendo Vossa Majestade um deles. A certa altura, e por arte de berliques e berloques, a centena de candidatos ao título, ficou reduzida a dez!
Nesses dez, de que Vossa Majestade faz parte, há de tudo: poetas, navegadores, reis, diplomatas, um ministro do seu colega D. José I, um ditador e um dos seus muitos e encarniçados opositores.
Sucede que ultimamente correm vários boatos e até se diz, à boca pequena, que está a ser urdida uma conspiração visando postergar o nome de Vossa Majestade pondo-o em último lugar. E perante tanto desprezo e ingratidão eu revoltei-me. Será justo atribuir tal lugar ao nosso mais prestigiado Mata-Mouros, vencedor de Ourique e Fundador da Nacionalidade?
Mas as injustiças não se ficam por aqui. Saiba Vossa Majestade que centraram a escolha entre dois controversos concorrentes – um tal de Salazar, um ditador, uma espécie de fantasma, uma assombração de que todos têm medo e a quem uma escritora já apelidou de “cromo”, e um tal de Cunhal, um resistente ao “consulado” do atrás citado, mas do qual também se dizem cobras e lagartos!...
E foi ontem ao ver a apresentação de um resumo póstumo do reinado de Vossa Majestade – resumo muito mal “amanhado”e excessivamente folclórico, diga-se de passagem!... – que incluía, entre muitos outros feitos, batalhas “ao vivo” com Mouros que caíam como tordos no dia da abertura da caça que resolvi escrever-lhe. Bem sei que isto não passa de um desabafo, pois sem código postal duvido que esta carta lhe chegue às mãos…
Fica no entanto o meu testemunho e a minha grande homenagem ao Homem que nos legou este espaço rectangular que se dilatou, que deu novos mundos ao Mundo, mas que, infelizmente, foi encolhendo, encolhendo, até se transformar numa espécie de arena onde quase diariamente se realizam combates de galos de bela plumagem… mas sem crista!
E termino citando os versos de um poeta, seu companheiro de lista, Fernando Pessoa: Ninguém sabe que coisa quer. / Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal nem o que é bem. / Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro. / Portugal, hoje és nevoeiro…

1 comentário:

dismore disse...

Excelente! Brilhante, como é hábito. Tenho, claro, as minhas preferências (sobre os seus escritos, quero dizer. Sobre os 100 melhores concordo consigo)mas esta é, sem dúvida uma delas!