sábado, abril 03, 2010

A Ti Ermelinda



Nestas noites de chuva, frio e vento, enquanto o sono não chega o pensamento não pára, e leva-me a assistir, de olhos fechados, ao desbobinar do filme, um filme muito antigo, com clarões pelo meio, bocados em branco, imagens que ao longo dos anos o tempo apagou.
E esta noite, talvez arrastado pelo vento forte que soprava lá fora, num turbilhão de recordações, eu imaginei a Ti Ermelinda, a sardinheira, pé descalço, canasta à cabeça que vinha lá das bandas de Tondela, a pé, vendar o pescado nas aldeias que ladeavam o seu itinerário. Sempre bem disposta, quer chovesse, ventasse ou fizesse frio, lá vinha ela, quase diariamente, em busca do sustento da família.
Naquele tempo os laços de amizade eram mais sinceros e espontâneos e a Ti Ermelinda era considerada quase como família. Não tinha problemas com a alimentação e ora numa casa ora noutra encontrava com que aconchegar o estômago nas horas das refeições. Sempre com aquela humildade que caracterizava as gentes trabalhadoras e educadas daquele tempo, raro aceitava partilhar a mesa com os clientes… Estou a vê-la sentada na escada de pedra, um prato de caldo na mão e um naco de broa no regaço, saboreando, deliciada, a refeição do meio-dia!
Depois da volta, depois de ter percorrido cerca de vinte quilómetros, regressava a casa e tinha ainda tempo para cuidar dos animais e do amanho do quintal onde, dizia ela, granjeava tudo o que necessitava para a sua alimentação.
Manhã cedo – contava ela – aquecia um prato de sopa que tinha feito na véspera, esmigalhava uma fatia de broa para a tornar mais substancial, – naquele tempo não havia iogurtes nem cereais, era tudo mais “caseiro” – comia, dirigia-se ao vendedor do pescado onde comprava a sardinha, e ei-la, canasta à cabeça, percorrendo montes e vales, caminhos de carro de bois ou estreitas veredas, rumo ao destino, às aldeias do concelho. Sardinha fresca!...
E assim foi durante anos. Havia alturas do ano em que muitos a compravam e guardavam em potes de barro, acondicionada em camadas de sal e passados meses, que sabor inigualável tinha aquela sardinha em salmoura, a pingar aquele óleo amarelo em fatias de broa de milho!
A vida, depois, levou-me pra longe, deixei de a ver, mas soube que apesar de naquele tempo ainda não haver vacinas milagrosas, nem antibióticos, ela tinha morrido com uma idade respeitável.
E isso, porque a Ti Ermelinda nunca se deve ter empanturrado com hambúrgueres, pizas, donuts e outras “comidas modernas”. E também porque as caminhadas que fez ao longo da vida ao memo tempo que lhe devem ter enrijecido os músculos, não deixaram que a gordura entupisse as suas veias com aquele “veneno” conhecido pelo nome de colesterol ruim, muito na moda e que tem levado muita boa gente para o “jardim das tabuletas”.
Gentes, sons, sabores, cheiros, paisagens são recordação de infância guardadas tão profundamente na memória, que por mais que vente, que chova, que neve, nada há que apague aquela chama que nos permite, ainda que em pensamento, descortiná-las embora já muito longe…