domingo, dezembro 20, 2009

Mas as crianças, Senhor...

Cheguei agora a casa e em complemento do que escrevi de manhã e porque vi na rua da cidade crianças famintas e tiritando de frio, lembrei-me de um poema de Augusto Gil,de 1909, em "Luar de Janeiro" que transcrevo pela sua oportunidade:

A NEVE

Batem leve, levemente,
como quem chama por mim...
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim...

É talvez a ventania;
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento, com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
Há quanto tempo a não via!
E que saudade, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
de uns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
- depois em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador
sofra tormentos... enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na natureza...
– E cai no meu coração.

Augusto Gil – Luar de Janeiro, 1909

Desabafo

Nesta manhã fria de Domingo, 20 de Dezembro de 2009, com a temperatura a rondar os dois graus positivos no termómetro que tenho à entrada da porta, aqui estou, bem quentinho, a pensar em todos aqueles que a esta hora enfrentam esta onda de frio. E penso, sobretudo nos que dormem na rua, nos que não têm agasalhos suficientes ou naqueles que são obrigados a suportar estas baixas temperaturas para ganharem o seu sustento. Sempre fui muito sensível ao frio e, por vezes, o simples facto de abrir a janela e ver o manto branco da geada que cobre o meu quintal, faz com que me sinta completamente tolhido nos meus movimentos!...
Nesta altura do Natal são muitos os apelos à solidariedade, à angariação de bens e roupas para os mais carenciados. Porém, a maior parte desses apelos são feitos, mais porque se tornou um hábito desta quadra natalícia do que por verdadeira convicção.
Há, nestas época de Natal, muita hipocrisia misturada nestas acções de pretensa ajuda aos necessitados.
E é por isso que eu me revolto contra aqueles que se dizem humildes, mas que praticam conscientemente a injustiça. Revolto-me contra aqueles que falam em Deus com devoção, mas que no fundo, elegeram como ídolos a ganância, a soberba e a inveja.
E revolto-me, sobretudo, contra aqueles que, podendo, não são capazes de praticar o bem, mas estão sempre a criticar o bem que outros fazem!
E que dizer dos que dão esmolas na rua para que todos vejam e espalham aos quatro ventos essa “caridade”hipócrita?!...
Por tudo isso urge dizer não à injustiça, à falsa compaixão, a toda essa fingida solidariedade que por aí se apregoa.

sábado, dezembro 19, 2009


Esta fotografia foi tirada em 1943 no Colégio Tomás Ribeiro em Tondela. Fizemos vários jogos com outras equipas, nomeadamente de outros estabelecimentos de ensino – Colégios de Oliveira do Hospital, Mangualde, Liceu Alves Martins – e outras equipas da época.
O Professor Pimenta, ex-jogador da Académica de Coimbra orientou-nos durante algum tempo nos treinos.
A equipa era constituída, da esquerda para a direita e de pé: Reis, Vicente, Manuel, Aureliano (Espanhol), Fausto Lobo, Almeida. De joelhos: Dionísio, Palinho, José Brás (mais tarde jogador da Académica de Coimbra) Filipe e Humberto.
Pelo que sei, o Reis, o Vicente, o Espanhol, o Lobo, o Dionísio, o José Brás, e o Humberto já faleceram. Tenho estado com o Palinho e do Almeida e do Filipe, perdi-lhes o rasto…
O Reis, encontrei-o em Kinshasa, trinta anos depois, em 1973 e só pela fotografia confirmámos que éramos nós, de tal maneira tínhamos mudado de feições!... Os anos não perdoam…

O Palinho e eu fizemos também parte da equipa de Voleibol do Colégio Tomás Ribeiro, que ficou em 2.º lugar no campeonato nacional da Mocidade Portuguesa em 1945.
Na foto:
Da esquerda para a direita: Henrique F. Marques, Amadeu Viegas, Aureliano (Espanhol), Manuel V. Costa, Jorge Amaral e António Gomes (Palinho).
O Amadeu e o Espanhol já faleceram. Há ainda (Dezembro de 2009) quatro “sobreviventes”: o Henrique, o Manuel, o Amaral e o Palinho.

quarta-feira, dezembro 16, 2009

Um crime perfeito

Viviam numa casa empoleirada lá bem no alto da serra e lá iam sobrevivendo sem sequer receberem o tal famigerado Rendimento Social de Inserção. O Francisco tinha ouvido na rádio que era preciso assinar uns papéis, mas como era complicado, desistiu. Tudo tinha mudado e quase tudo era proibido. A última novidade que soubera por um sobrinho que habitava na cidade é que nem animais da própria criação se podiam matar. Só no matadouro…
Desconfiado de todas as modernices, evitava descer à cidade e lá se entretinha a cultivar a terra ingrata que lhe dava o sustento para a mulher e dois filhos e ainda para a criação: galinhas, porcos, patos, um chibo e duas cabras que lhe davam o leite prós miúdos.
Na semana passada a sogra viera viver com eles e era mais uma boca a sustentar, o que complicava ainda mais as coisas. Vida ingrata! De cada vez que ouvia notícias acerca do ordenado e da vida airada dos políticos e afins, tinha ganas de lhes apertar os gasganetes!.. Vão pró raio que os parta!... E cada vez se agigantava mais a ideia que o perseguia há algum tempo. Estava decidido. Ia fazê-lo! A mulher sempre temente às leis dos homens e a Deus, tentava dissuadi-lo:
-Ó Francisco, tu já pensaste no que vais fazer?
-É evidente que sim. Há outra maneira de resolver a situação para dar de comer a todos?
- Não sei, mas matar assim…E se descobrirem?
- Se descobrirem, descobriram e então? Está tudo preparado e já não se pode recuar. O compadre Barnabé vai ajudar-me e vais ver que tudo há-de correr bem. Lembra-te que é para bem dos nossos filhos e até da tua mãe. Ninguém vai descobrir…
Entretanto bateram à porta. A mulher espreitou pela janela. Era a carrinha do compadre Barnabé. O Francisco deu um pulo na cadeira, pegou na enorme faca que tinha afiado há pouco, e saiu porta fora…
De manhã os filhos notaram a falta do pai. «Foi trabalhar e só vem noite dentro», disse-lhes a mãe.
E era já alta noite quando a porta se abriu de mansinho. Era o regresso. Entrou o seu homem seguido de compadre Barnabé, sorridentes, camisas ensanguentadas e cada um com seu saco às costas. O saco do Francisco estava roto e pelo rasgão saia uma perna da vítima.
A mãe, aflita, perguntou: Têm a certeza de que ninguém vos viu?!... Foi o compadre Barnabé já habituado, pois não era o primeiro que liquidava, que respondeu:
-Calma! Não esteja nervosa. O servicinho foi feito como manda a praxe. Mas que belo bicho, comadre! E criado com batatas e hortaliça cá destas nossas courelas – carne sem corantes nem conservantes, esse tradicional e genuíno produto que ainda se encontra nos lugares mais desconhecidos deste nosso Portugal!...
Nem os do Alentejo, criados com bolota, têm assim esta carninha gostosa… ASAE?... Qual ASAE?... Esses “iconoclastas” que andam a tentar acabar com as nossas tradições gastronómicas?! Eles sabem lá o que é bom?...